detalhe de foto de José António Barão Querido, alçada da tapada

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Alliance of Civilizations
Alliance of Civilizations: Report of the High-level Group, 13 Nov 2006

World Health Organization
The Global PLAN TO STOP TB (2006-2015)
A Estratégia STOP TB
The Call to STOP TB
WORLD TB DAY
UN Millennium Development Goals

Tema intervenção

Discurso de Encerramento

July 24, 2008

Jorge Sampaio
Enviado Especial das Nações Unidas para a Luta contra a Tuberculose

Embaixador de Boa Vontade da CPLP para a Saúde

FÓRUM PARA QUESTÕES DA SAÚDEDA SOCIEDADE CIVIL DA CPLP

Encerramento

Lisboa, Centro Cultural de Belém,

24 de Julho de 2008

Excelências
Minhas Senhoras e Senhores
Caros participantes

➢ Em primeiro lugar, quero desejar calorosas saudações de boas-vindas aos nossos ilustres convidados que aceitaram participar nesta sessão de encerramento do primeiro Fórum para a Saúde da Sociedade Civil da CPLP.

➢ A sua presença, não só muito nos honra, como constitui outrossim um sinal forte do seu interesse pelos trabalhos que aqui decorreram hoje, o que é de bom auspício para a realização dos objectivos prosseguidos.

➢ Quero, depois, agradecer a todos os participantes pela sua activa e empenhada participação nos debates que tiveram lugar.

➢ A densidade e qualidade dos relatórios que ouvimos mostram claramente que os intercâmbios foram frutuosos, que deles resultam inúmeras sugestões, pistas, comentários e observações sobre o caminho a seguir.

➢ Estamos, assim, todos de parabéns. Alcançámos plenamente os resultados pretendidos, aliás coligidos num documento único – o Apelo à Acção – que, amanhã, em vosso nome, tornarei presente aos Chefes de Estado e de Governo.

➢ Do Apelo à Acção quero destacar quatro pontos porque representam, afinal, o mapa dos objectivos que nortearam os trabalhos e, ao mesmo tempo, exprimem as nossas preocupações, constituindo, por isso, o núcleo das solicitações dirigidas aos Chefes de Estado e de Governo, a saber:

o Criação de uma rede da sociedade civil da CPLP para as questões da saúde, coordenada por Pontos Focais que, em cada um dos países se encarregarão de coordenar a actuação da sociedade civil, bem como facilitar e fortalecer a cooperação e a troca de experiências e capacidades técnicas entre as sociedades e os respectivos Governos.

o Criação de um comité de acompanhamento das políticas de saúde da CPLP, em que tenham assento, em representação da sociedade civil, os Pontos Focais que acabei de referir.

o Mobilização conjunta de recursos sustentáveis ao serviço da CPLP, designadamente através de um Fundo Especial Saúde da CPLP.

o De futuro, realização de fóruns da sociedade civil em paralelo às Cimeiras de Chefes de Estado e de governo da CPLP

➢ Aliás, entendo que, neste Fórum, fomos mesmo um pouco além do próprio Apelo à Acção e os debates hoje aqui travados acrescentam já a este quadro programático.

➢ Importa agora dar continuidade ao processo desencadeado e torná-lo sustentável.

➢ Pela minha parte, como já disse, advogarei amanhã, junto dos Chefes de Estado e de Governo, as grandes linhas do Apelo à Acção, na expectativa de que o acolhimento às solicitações nele contidas seja favorável.

➢ Conto, depois, com o Secretariado da CPLP e, claro, convosco para levar a bom porto esta iniciativa, na certeza de que ela contribuirá para melhorar a situação da saúde pública dos cidadãos da nossa Comunidade.

➢ Sejamos, porém, responsáveis e lúcidos: se é verdade que a sociedade civil é insubstituível como actor da saúde, ninguém a substituirá no seu fazer. Por outras palavras, não fiquem à espera que outros façam por vós o que não souberem ou quiserem fazer.

➢ Em qualquer dos casos, uma coisa é certa: redundarão prejudicados o interesse comum e o bem público e será, afinal, sempre contra nós próprios, no plano individual e colectivo, que a inacção, a desunião e a descoordenação da sociedade civil jogarão.

➢ Ora, perante a situação de verdadeira emergência humanitária que vivemos na CPLP no campo da saúde pública, importa, mais do que nunca, dar corpo à sabedoria universal do velho ditado que, na nossa língua, nos recorda que só a “união faz a força”.

➢ Sabem, de resto, que podem contar sempre comigo!

➢ Muito obrigado a todos.

Palavras de Abertura

July 24, 2008

Jorge Sampaio

Enviado Especial das Nações Unidas para a Luta contra a Tuberculose
Embaixador de Boa Vontade da CPLP para a Saúde

Palavras de Abertura
Fórum da Sociedade Civil da CPLP sobre Saúde Pública

Lisboa, Centro Cultural de Belém,
24 de Julho de 2008

Excelências
Minhas Senhoras e Senhores
Caros participantes

➢ Quando em Berlim, em Outubro do ano passado, à margem de uma reunião de Ministros da Saúde da região europeia dedicada à Tuberculose, numa daquelas conversas durante o intervalo, em pé, entre dois golos apressados de café e um encontrão, um pequeno grupo de brasileiros e portugueses ali presentes, me fizeram a sugestão de promover um encontro dedicado a questões de saúde entre sociedades civis dos países de língua portuguesa, acolhi tal ideia com grande interesse, mas confesso também com alguma reserva.

➢ Reserva não, porém, quanto ao fundo da proposta, cuja bondade não me suscitou a menor dúvida – bem, pelo contrário, logo me pareceu que vinha pôr o dedo na ferida de uma enorme lacuna. Mas, reserva, sim, quanto à sua viabilidade prática, forma e meios de a operacionalizar e, sobretudo, quanto ao horizonte temporal da sua concretização.

➢ Porque, a verdade, é que temos de reconhecer que as coisas são, quase sempre, tão lentas no espaço da nossa comunidade….temos uma tendência tão generalizada para ficar à espera que os outros façam….

➢ Mas não há fatalismos e, na realidade, podemo-nos congratular porque conseguimos!

➢ Quero assim agradecer a todos quantos tornaram este Fórum possível:

o antes de mais, ao Governo Português, anfitrião da Cimeira, que endossou a iniciativa, mas também aos Governos dos restantes países membros; deixem-me que, neste particular dirija palavras de especial apreço ao Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal, Professor João Cravinho, pela sua disponibilidade, empenho e apoio prestado;
o aos patrocinadores do evento que, graças à sua generosidade, tornaram possível a presença aqui de um leque significativo de participantes oriundos de toda a Comunidade;
o a todas as organizações internacionais e da sociedade civil (activistas, empresas, fundações) que, de uma forma ou de outra, nos prestaram assistência e colaboração;
o por último, permitam-me ainda que agradeça, de forma muito particular, a um núcleo duro de pessoas, que não vou citar para não incorrer em injustiças, que, com o seu conhecimento do terreno e saber fazer, não pouparam esforços para fazer deste Fórum um sucesso.

Meus amigos

➢ Sei, pelas diversas funções anteriormente desempenhadas, que a chamada “sociedade civil”, não só é uma entidade ambígua, fragmentada e o mais das vezes desarticulada, como é também, quase sempre, um interlocutor equívoco do ponto de vista de quem exerce a governação, seja ela regional, nacional ou internacional.

➢ Digamos que há uma crescente tensão e –às vezes, confusão – acerca do papel da sociedade civil.

➢ Por um lado, reconhece-se que a nova repartição de poderes e de recursos resultante basicamente da globalização e da crescente transversalização e internacionalização dos problemas, desafios e oportunidades de toda a ordem, torna desejável – e mesmo indispensável – que, cada vez mais, os actores não estatais sejam chamados a participar e a contribuir para o exercício da governação dos bens públicos.

➢ Por outro lado, nem sempre estão criadas as condições necessárias para assegurar o adequado envolvimento da sociedade civil na governação, não só do ponto de vista da sua capacitação, transparência, representação e responsabilização, mas também no da garantia da sua independência e autonomia, para além da questão da necessária coordenação de todos os parceiros.

➢ Ora, parece-me que, embora compita ao Estado e aos Governos a boa governação dos bens públicos – e refiro-me, afinal, à garantia dos direitos humanos fundamentais para todos, ou seja ao direito universal a uma vida digna, o que implica nomeadamente paz, segurança, justiça, educação, saúde -, é hoje óbvio, também, que só com a estreita colaboração de todos os actores da sociedade civil – e, aliás, o indispensável concurso da comunidade internacional – podem estes direitos ser realizados.

➢ No caso da saúde pública, que nos traz e reúne aqui hoje, isto é por de mais evidente: neste campo as carências são gigantescas, as fragilidades múltiplas e os desafios incomensuráveis. E deixem-me que sublinhe também um outro ponto, absolutamente chocante, o da extrema disparidade de situação da sáude pública no espaço da nossa Comunidade.

➢ Como podemos ficar indiferentes e de braços cruzados quando olhamos para alguns dos indicadores da saúde relativos à nossa Comunidade ?

➢ Por exemplo:

o Prevalência HIV (em % da população entre os 15 e os 49 anos – dados de 2005): varia entre os 0,4 e os 16,1;
o Prevalência da tuberculose: por 100.000 (2006), varia entre os 55 e os 789, com 24 para Portugal.
o Casos de Malária – Cerca de dois milhões de pessoas (informação de 3 países não disponível)

o A esperança média de vida à nascença (total – 2005) oscila entre 41,4 anos e os 70,7 (Portugal 78)
o Gastos de saúde totais per capita (USD – 2004) varia entre os 8.7 US Dólares e os 289.5 US Dólares (Portugal – 1665 US Dólares

➢ Estas disparidades abissais deveriam provocar em nós uma espécie de sobressalto civilizacional pois uma Comunidade coesa e solidária, de que nos reclamamos, não é compatível com a prevalência de tamanhas desigualdades.

➢ Mas não me quero alongar e, por isso, termino com duas rápidas observações conclusivas.

➢ Primeiro – os Países de Língua Portuguesa, como comunidade de destino, podem fazer muito mais em conjunto no plano da saúde pública, quanto mais não seja, porque a língua comum que partilham lhes abre um campo de cooperação com um enorme potencial muito pouco explorado ainda; se a língua nos une, então devemos valorizá-la como factor de solidariedade, vector de coesão e propulsor da cooperação. Mas, os Países de Língua Portuguesa podem também fazer muito mais nesta área porque, no plano internacional, dispõem de uma presença forte que lhe permitiria falar a uma só voz junto das instâncias multilaterais de cooperação – a meu ver, importa fazer valer esta dimensão, importa apostar mais na internacionalziação da CPLP nos domínios da ajuda ao desenvolvimento, da captação de recursos e da assistência técnica concreta.

➢ Segundo – cabe à sociedade civil organizar-se, assumir as suas responsabilidades e exercer o seu poder de influência para que o direito elementar à saúde seja respeitado e realizado universalmente.

➢ Por isso, este Fórum pode, a meu ver, constituir um marco na capacitação da sociedade civil no âmbito da CPLP. Mas isso dependerá sobretudo de vós, da vossa capacidade em formar consensos, de articulação e de coordenação.

➢ Por mim, acredito que a rede da sociedade civil da CPLP para a saúde vai ser hoje lançada aqui e que assistiremos no futuro ao seu desenvolvimento e consolidação.

➢ É , pelo menos, o voto que formulo e o objectivo prosseguido pelos trabalhos desta jornada.

➢ Muito obrigado a todos e bom trabalho.

Presidência Portuguesa da UE – Conselho Informal de Ministros do Desenvolvimento – Funchal, 22 de Setembro 2007

September 22, 2007

 

JORGE SAMPAIO

 

 

ENVIADO ESPECIAL DO SECRETÁRIO-GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A LUTA CONTRA A TB

 

 Europe and the midway point: the global challenge of achieving the Millennium Development Goals

 

*

 

A Glocal approach: the way to achieve the

 Millennium Development Goals on Health

 

 

 

 

 

Senhores Ministros

Senhor Comissário para a Ajuda Humanitária, Louis Michel

Senhor Director do UN Millennium Project, Senhor Jeffrey Sachs

Excelências

Minhas Senhoras e Senhores

  

 

         Antes de mais, deixem-me que dirija breves, mas calorosas palavras de agradecimento à Presidência Portuguesa da União Europeia, na pessoa do Senhor Secretário de Estado da Cooperação e dos Negócios Estrangeiros, Professor João Cravinho, pelo amável convite para participar nesta interessante iniciativa;

 

 

         Saúdo também a distinta audiência aqui presente, entre a qual reconheço alguns velhos e bons amigos.

 

 

         Ao Professor Jeffrey Sachs, a minha homenagem pela sua visão generosa dos desafios civilizacionais que temos pela frente, mas sobretudo por nos ter ajudado a pensá-los – permitam-me o neologismo – em termos “glocais. Ou seja, aliando a uma indispensável abordagem global dos problemas, que os nossos tempos mundializados não dispensa, uma dimensão local (que pode ser nacional, regional ou comunitária), necessária ao sucesso de qualquer acção sustentável.

 

         A meu ver, só se poderá, de facto, assegurar a realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODMs), se usarmos de um paradigma de tipo glocal.

 

         Aliás, a melhor exemplificação da oportunidade deste paradigma encontro-a na ideia inovadora da criação do Fundo Global para a luta contra a Sida, a Tuberculose e a Malária, que devemos – como estarão certamente lembrados –  precisamente a Jeffrey Sachs e Attaran.

 

  

         Hoje, cinco após a criação do Fundo, é-nos possível traçar um balanço muito positivo do impacto deste novo mecanismo no combate às três maiores pandemias do nosso tempo que, até hoje, já permitiu salvar mais de 1.9 milhões de vidas.

 

         Quero ainda frisar o quão decisivo o contributo da União Europeia e dos seus membros tem sido para o sucesso alcançado, do qual resultou um notável aumento dos recursos disponíveis para o controlo da TB em geral e, em África, em particular.

 

         Importa sublinhar que o sucesso do Fundo Global representa também o sucesso do multilateralismo, porventura de um género novo – aquele que recorre a parcerias público-privado -, o qual é, a meu ver, absolutamente indispensável  à defesa dos bens públicos globais, de que a saúde pública constitui um elemento central.

 

  

Excelências

  

– Quero aproveitar esta oportunidade para partilhar convosco algumas reflexões sobre questões de saúde pública global no contexto da Ajuda Pública ao Desenvolvimento com vista à realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio.

 

– Por isso, vou usar o meu tempo de palavra, centrando-me nos ODMs relativos à saúde – e particularmente ao da Tuberculose. Farei, para tanto, duas considerações e três apelos.


I – Duas considerações

 

 

Primeira consideração – A realização dos ODMs em matéria de saúde exige um compromisso de tipo “glocal”

 

– O que significa isto ?

 

– Significa que só através de uma Parceria Global, reunindo todas as partes interessadas – países em desenvolvimento e doadores, agências, fundações, sector empresarial, ONGs e sociedade civil em geral se poderá realizar a tempo os ODMS  relativos à saúde. A meu ver, a proliferação desordenada de iniciativas, programas e acções não joga a favor da realização atempada dos ODM, não garante eficácia nos resultados, não permite uma gestão adequada dos recursos e tem um custo demasiado elevado. Só recorrendo a uma Parceria Global, dotada de mecanismos próprios, será possível assegurar uma adequada coordenação da Ajuda Internacional nesta área, evitando redundâncias e lacunas, eliminando contradições, incoerências e desperdícios.


 

– Significa também que, para garantir a transformação dos objectivos em resultados, há que os inscrever nas agendas políticas nacionais porque afinal a sua realização é no plano local, ou não é. A meu ver, é indispensável assegurar uma apropriação precoce dos programas de ajuda internacional por parte das autoridades dos países destinatários e velar pelo seu perfeito entrosamento com os Programas nacionais de Saúde.

Especialmente em matéria de saúde pública, em que a componente da diversidade cultural das sociedades e as realidades sócio-económicas das populações são tão díspares, importa que as autoridades nacionais responsáveis pela área, sejam desde a primeira hora associadas à concepção, implementação e avaliação dos programas de cooperação internacional, assumindo uma clara co-responsabilidade pelo seu sucesso.

 

Significa, por último, que são necessários esforços coerentes e continuados, por forma a garantir a sustentabilidade da ajuda. Na realidade, sem uma planificação de longo prazo, sem uma estratégia global e abrangente de controlo das pandemias e de reforço dos sistemas de saúde e sem a garantia de que os recursos disponíveis são suficientes, dificilmente se conseguirão alcançar os ODM a tempo na área da saúde.

 

 

 

– Segunda consideração – Refere-se à Tuberculose – porque é tão importante alcançar o ODM relativo à tuberculose ?

 

 

– Basicamente por três razões:

 

– Por um lado, porque os custos económicos e sociais da TB são inaceitáveis. Cerca de 9 milhões de pessoas adoecem com TB cada ano. Mais de 1.6 milhões morre. Tratando-se de uma doença curável, é insuportável não redobrar de esforços por forma a que se possa reduzir para metade o número de mortes até 2015.

 

– Por outro lado, porque a TB não tem fronteiras e só amplifica o círculo vicioso da pobreza e do subdesenvolvimento. A globalização significa que esta doença está de volta até nos países mais ricos. Mas, na verdade, a TB afecta especialmente as populações mais vulneráveis. Ora, como não temos investido de forma adequada no controlo da TB, estamos também a comprometer os investimentos no desenvolvimento em geral. No fundo, estamos a deixar que, no mundo inteiro, milhares de pessoas sofram para nada.

 

– Em terceiro lugar, por causa das sinergias nocivas entre a TB e o HIV-SIDA.

 

– Como é sabido, mas pouco divulgado, o HIV-SIDA e a TB geram, em conjunto, um sinergia negativa que acelera a sua mútua progressão, a qual tem provocado um explosão de casos de TB em regiões de prevalência elevada de HIV. Esta é a razão pela qual a TB, que é uma doença curável, permanece a principal causa de morte entre as pessoas infectadas com o HIV-Sida uma doença que permanece sem cura.  

 

– É pois indispensável melhorar a coordenação na luta conjunta contra a Sida e a TB. Não esqueçamos que, em 2006, na Sessão Especial das NU sobre a SIDA, os Estados acordaram em trabalhar para a realização do acesso universal à prevenção exaustiva do HIV, tratamento, serviços de apoio e cuidados até 2010, enquanto etapa decisiva para a realização do ODM nº 6.

 

– Mas como a TB continua a ser a principal causa de doença e morte entre as pessoas que vivem com HIV, mesmo dos que estão em tratamento com anti-retrovirais, é óbvio que o conceito de acesso universal tem de incluir também o acesso universal aos diagnósticos de prevenção e tratamento da TB para todas as pessoas que vivem com HIV. Ora, para concretizar este acesso universal, são necessários serviços abrangentes e integrados de TB e HIV.

 

– O que devemos então fazer para inverter a situação, perguntar-se-á.

 

– O caminho é claro: para já, mais investimentos na inovação e mais liderança política.

 

Inovação  Para eliminar a TB e as novas ameaças que dela resultam, precisamos de mais investigação científica e inovação para assegurar o acesso a novos medicamentos, diagnósticos e vacinas que sejam eficazes em todas as situações no terreno.

 

Liderança política –  Perante a emergência de novos desafios como o HIV associado à TB e à TB ultra resistente (a chamada extensively drug resistant TB), precisamos de serviços integrados, sistemas de saúde eficientes e programas eficazes. As doenças resistentes são um artefacto humano,  para as quais são necessários cuidados de alta qualidade, ao mesmo tempo que se avança para o acesso universal. A liderança política nos países em desenvolvimento é indispensável quer para o reforço dos sistemas de saúde quer para dar uma resposta forte de controlo da doença.

 


 

II – Três Apelos

 

 

Passo agora à segunda parte da minha intervenção, com três apelos:

 

 

– Primeiro apelo: o reforço dos sistemas de saúde

 

 

 

Nenhum ODM em matéria de saúde será realizado se não se derem passos significativos no desenvolvimento e reforço dos sistemas de saúde.

A promoção de um Plano Global para reforçar os sistemas de saúde é indispensável para que se consigam realizar os ODM relacionados com a saúde. Isto passa, por exemplo, pela integração dos programas de controlo do HIV e da TB. Exige uma melhoria das infra-estruturas e investimentos em laboratórios. Mas, requer igualmente que se aborde o problema da dramática penúria de profissionais de saúde, com que muitos países em desenvolvimento se defrontam.


Cinquenta e sete países, na sua maioria africanos e asiáticos, enfrentam uma séria crise a nível dos recursos humanos no sector da saúde. A OMS calcula que são necessários mais de 4 milhões de profissionais de saúde para colmatar esse défice. Sem uma intervenção urgente, a situação só pode agravar-se.

A meu ver, é urgente adoptar medidas abrangentes que se repercutam no bem-estar das populações. Por exemplo, deveria considerar-se a possibilidade de adoptar um Código de Boas Práticas na migração de profissionais de saúde, de forma a prevenir a fuga permanente de pessoas qualificadas dos países pobres para os países mais ricos, e a encorajar o regresso de migrantes qualificados aos seus próprios países.

 

 

– Segundo apelo: reforçar a cooperação com África em matéria de saúde pública

 

 

– A situação do continente africano em matéria de saúde pública é tristemente paradigmática.


Basta recordar alguns números. África concentra 63% dos casos mundiais de HIV-SIDA e 72% do total das mortes ocorridas em 2006. Cerca de 90% das mortes causadas pela malária registam-se na África sub-Sahariana. E em relação à Tuberculose (TB), conta com 80% dos casos mundiais, com uma taxa de incidência de 4% ao ano, alimentada pela epidemia da SIDA. Dos 46 Estados da região, 34 apresentam uma taxa de prevalência da TB de 300 casos por 100,000 habitantes (média da EU a 25, 12.6 casos por 100.000). Por tudo isto, a TB foi declarada em 2005 uma emergência regional em África.

Se pensarmos que, com apenas 11 % da população mundial, África conta com 24% do fardo mundial de doença e apenas 3% dos recursos humanos mundiais na área da saúde, facilmente se compreenderá que a saúde pública em África tem de estar no topo da agenda mundial. E se a ajuda internacional ao desenvolvimento não pode por si só resolver todos os problemas de saúde pública nem dispensa uma agenda interna e planos de acção nacionais, sem ela nenhum poderá, no entanto, encontrar solução, quer por se tratar de problemas transversais, quer por a sua dimensão revestir um carácter global.


 

Por isso, enquanto Enviado Especial das NU para a Tuberculose, tomei a liberdade de enviar a todos os Estados membros da EU um Non Paper destinado a alimentar as reflexões sobre a agenda da saúde na perspectiva da próxima Cimeira EU-África. Permito-me hoje, entregar a cada um de vós, uma cópia dessas sugestões…perdoem-me aproveitar, assim à má fila, a vossa presença aqui!

 

 

– Terceiro apelo: aperfeiçoar o sistema de ajuda internacional em matéria de saúde

 

 

– Mais do que um apelo, trata-se de uma interrogação de fundo que gostaria de partilhar convosco. Grosso modo, o sistema internacional do nosso tempo continua a ser aquele que foi pensado para o pós-guerra, em meados do século XIX. Neste panorama, apenas a União Europeia constitui porventura o único elemento novo, promissor de uma nova dinâmica no âmbito da cooperação internacional. 


 

– No entanto, é bem sabido que se avolumam as vozes críticas, a favor de uma reforma do sistema internacional por forma a torná-lo mais adequado aos desafios, ameaças e oportunidade do nosso tempo.

 

– Em matéria de saúde pública, estamos todos conscientes da dimensão global dos problemas e das grandes pandemias que continuam a ameaçar a humanidade – o HIV-SIDA, a Malária e a TB – mas também das novas ameaças, como sejam a gripe aviária H5N1 ou a Tuberculose ultra-resistente.

 

– Por isso, é importante começar a delinear estratégias que permitam alterar a pouco e pouco a abordagem tradicional – sectorial e fragmentada – que se tem feito dos problemas de Saúde Pública Global, por forma a tornar possível respostas mais eficazes e garantir resultados.

 

– Não acredito em transformações súbitas e radicais. Por isso, entendo que vale a pena ir introduzindo pequenas mudanças aos poucos, para a prazo se conseguir fazer a diferença.


 

– Quero, por isso, terminar, partilhando convosco uma sugestão que avancei junto da OMS e que se inscreve neste quadro. Trata-se de organizar no primeiro semestre do próximo ano uma reunião de alto-nível, sentando à mesma mesa as agências competentes das UN, as principais instituições doadoras (de que a União Europeia é a principal componente), fundações e representantes dos Estados mais afectados pelas pandemias da TB e do HIV-SIDA. Com que objectivo ? Justamente para delinear uma estratégia comum com vista a garantir a realização do ODM relativo à TB, sem esquecer a questão da abordagem integrada do HIV-SIDA-TB.

 

– Não será nenhum acto revolucionário, mas poderá porventura contribuir para dar um passo em frente, na direcção certa.

 

– Deixo aqui esta indicação porque quaisquer sugestões ou contributos da vossa parte serão bem-vindos.

  

 

Muito obrigado a todos.

50 ANOS DO TRATADO DE ROMA: BALANÇO E PERSPECTIVAS, Fundação de Serralves

May 24, 2007

INTERVENÇÃO NO SEMINÁRIO

 

  JORGE SAMPAIO

 

  POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO DIA DA EUROPA

 Porto

Fundação de Serralves

24 de Maio de 2007

Senhor Secretário de Estado da Defesa Nacional e do Mar,

Dr João Mira Gomes

Senhor Vice-Presidente do Parlamento Europeu,

Dr. Manuel dos Santos,

Senhora Directora da Representação da Comissão Europeia em Portugal, Drª Margarida Marques

Senhores organizadores

Minhas Senhoras e meus Senhores

Caros Amigos

  

Abreviarei as circunstanciais palavras de abertura, à expressão do meu reconhecimento pelo amável convite para hoje aqui estar presente, bem como do agrado com que prontamente o aceitei – sabem o quanto me interessam as questões europeias e a centralidade que estas têm tido no conjunto das minhas intervenções e reflexões ao longo dos anos, muito particularmente durante a última década.

 

Confesso, porém, que ao tomar conhecimento da vasta temática deste seminário – “Os 50 anos do Tratado de Roma: balanço e perspectivas”, sobre a qual me foi solicitado que me debruçasse, as dúvidas e as hesitações quase superaram o meu habitual militantismo e, por pouco, não passei a pasta …

Dúvidas porque cabe à História – e não a nós – realizar balanços. Hesitações porque, num ano de aniversário, as comemorações correm o risco de nos desviar do presente e de nos enterrar num tempo que já não dita futuros.

De facto, passados cinquenta anos do Tratado de Roma, em que tudo mudou tão radicalmente, é natural que a primeira questão que se coloque seja: mas, afinal o que significa comemorar, hoje, o Tratado de Roma? E o que representará essa data para a imensa maioria dos europeus que, quer por força do ciclo natural da idade quer pelas barreiras artificias da história, não viveram esse dia?

A esta última pergunta talvez tenhamos que responder: para esses representa pouco ou mesmo nada. Mas não deveria ser assim. Poderiam não conhecer os pormenores – mas deveriam ter uma percepção global e aguda da importância fundadora, histórica e política, daquela data. Não estou, porém, nada seguro que assim seja. Nesta medida, as comemorações desta data tornam-se um dever de memória.

Porventura a pergunta que formulei poderia ser substituída por outras, como, por exemplo, a de apurar o que significa a União Europeia para os europeus, para aqueles que sempre viveram na União Europeia e para os outros, que conheceram, digamos o antes e o depois.


Quanto às respostas, penso que cobrem um largo espectro de possibilidades, cujos extremos correspondem, por um lado, aos que não concebem a sua vida senão enquadrada na comunidade europeia e, por outro, aos que consideram a União Europeia de uma forma tão remota que nem sequer faz parte do seu horizonte de pertenças identitárias… Mas significará isto que precisaremos então, antes de tudo, de cultivar um patriotismo da Europa?

Assim, à pergunta “o que significa, cinquenta anos depois, comemorar o Tratado de Roma?” inclino-me a responder: significa reforçarmos a vontade de fazermos da nossa Europa uma verdadeira comunidade de destino, um projecto político mais dinâmico, com maior iniciativa e determinação, com menos bloqueios, desequilíbrios e menos adiamentos. Com diferenças e alternativas mais clarificadoras e, ao mesmo tempo, pois não são incompatíveis, consensos mais sólidos e duradouros. Quero eu dizer, uma Europa mais madura, com maior exigência e maior responsabilização, mas também com maior criatividade e maior iniciativa, maior inovação e maior ambição.

Não vos escondo que gostava que estas comemorações ocorressem num clima mais optimista e confiante. Não ignoro, não podemos ignorar, que os tempos têm sido difíceis para a Europa e para Portugal, que se instalou um negativismo que gera apatia e resignação. Penso que estas comemorações podem e devem ser o momento para recarregarmos as baterias europeias, reforçando a nossa vontade de reagir e, sobretudo, de agir com continuidade, persistência e determinação.

Em vez de um balanço que à História cabe realizar e tendo consciência de que, do que fizermos ou não fizermos, ela nos irá pedir contas, devemos antes, avaliar hoje o ponto em que estamos do nosso caminho. Como em 1948 os fundadores fizeram, é para o futuro que devemos voltar os olhos, não ignorando os problemas que longamente adiámos e temos obrigação de resolver, os novos desafios que, neste tempo de aceleração, não esperam por nós. Que Europa queremos ? Como a queremos ? Para que a queremos ? Que temos de fazer para lá chegar? Que futuro escolhemos de entre os futuros possíveis?

Por isso, nesta data de tão grande significado, proponho-vos uma reflexão crítica e exigente sobre o papel que a Europa pode assumir no mundo. Deixarei, pois, de lado a difícil quão decisiva questão para todos nós do modelo social europeu. Deixarei também para melhor ocasião, a questão crucial da identidade europeia e dos limites do projecto europeu. Ignorarei, enfim, as questões institucionais, porque ainda no rescaldo da rejeição do Tratado Constitucional em França e nos Países Baixos, disse, e depois por diversas vezes e em ocasiões distintas desenvolvi, o que nesta matéria, me parecia poder ser feito. Não me vou por conseguinte agora repetir, mesmo se, correndo o risco de parecer ficar fora da corrente …

 

*

 

Data do verão de 1993, o célebre artigo de Samuel Huntington, em que pela primeira vez o autor avançava a hipótese de que, com o fim da guerra fria, assente em pressupostos ideológicos, a política global passaria a ser dominada pelo confronto de civilizações, segundo linhas de clivagem de natureza essencialmente cultural.

Huntington considera assim que se caminha progressivamente para um choque de civilizações, num quadro dualista, em que o mundo aparece fracturado em dois, “o ocidente” opondo-se ao “resto do mundo”. Dada a secular hegemonia do “ocidente” (em termos políticos, económicos e culturais), esta seria a hora da reposição de novos equilíbrios, o momento de afirmação da antítese, numa visão afinal clássica da dialéctica hegeliana da história.

Porque fiz esta digressão ? Basicamente por duas razões.

Primeiro porque considero que o choque de civilizações não é nem uma mera profecia, nem matéria de pura disputa de académicos. Entendo, ao invés, que é uma hipótese que deve ser levada a sério, tanto mais, que acontecimentos posteriores de todos sobejamente conhecidos, a não permitem desmentir nem descartar totalmente. Por conseguinte, importa avaliar, à luz deste paradigma, o que representa o projecto europeu e qual tem sido o seu impacto no curso da vida internacional. Importa perceber se tem contribuído para reduzir a probabilidade de um choque de civilizações.

Em segundo lugar, porque este quadro de análise oferece interessantes pistas para delinear o futuro da Europa no mundo, o que podemos esperar da União Europeia e o que devemos exigir dela, para que possa definir-se como um antídoto ao choque das civilizações. Até porque, na história não há fatalismos, nem determinismos. Pelo que estamos no direito de exigir da União Europeia que seja uma força motriz do diálogo das civilizações e que não se deixe nem apagar nem arrastar para um confronto que pode evitar.

 

*

 

Ponto 1– A progressiva emergência da União Europeia como actor de política externa

  

O aviso de Huntington data de 1993. Nesse ano, a Europa, o que fazia ?

Andava às voltas com a ratificação do Tratado de Maastricht, que acabou por entrar em vigor em Novembro desse ano (sempre os Tratados e as suas sempi-eternas revisões … ); concluía o Mercado Único e preparava a segunda fase da União Económica e Monetária; abria as negociações de adesão com a Áustria, a Finlândia e a Suécia (sempre os sucessivos alargamentos …). No plano externo, travava-se o conflito nos Balcãs, a Europa dedicava-se à definição das suas relações com a Rússia e com os futuros PECO; no fim desse ano, tinha lugar o Uruguay Round, que abriria caminho para a maior liberalização de sempre no âmbito do comércio mundial.

Como todos bem sabem, os primeiros trinta anos da construção europeia fizeram-se ao abrigo dos Tratados de Roma, mesmo se, em 1986, o importante Acto Único os veio completar, por forma a acomodar as necessidades, cada vez mais prementes, da chamada “cooperação política”. Mas foi o Tratado da União Europeia, assinado em Maastricht, imposto pelo termo da Guerra Fria e dos equilíbrios que dela derivavam, que representou um verdadeiro ponto de viragem na dinâmica do projecto europeu.

Apesar de cristalizar todas as indecisões e compromissos próprios das épocas de transição e mudança, o Tratado de Maastricht é inovador a vários títulos, não só por ter tornado a criação do euro irreversível, mas também na área aqui considerada, porque consagra de forma irreversível uma Política Externa e de Segurança Comum, que deveria conduzir, a prazo, a uma Política de Defesa Europeia. A introdução destas matérias no então chamado segundo pilar, correspondeu a um esforço de sistematização da prática de cooperação política e representou um compromisso renovado dos Estados Membros em coordenarem as suas políticas nacionais, em torná-las mais coerentes e em prosseguirem objectivos comuns. Na altura, foi um primeiro sinal de esperança para vários sectores da opinião pública, então preocupada com a crise no Golfo e o agravamento da situação na Jugoslávia.

Após quase década e meia de vigência deste Tratado, tal como modificado em Amesterdão e em Nice, como avaliar os resultados obtidos ?

A meu ver, a resposta deve ser matizada. Os resultados obtidos em matéria de Política Externa e de Segurança Comum ficaram bastante aquém das expectativas, mas estão longe de serem todos negativos.

Comecemos pelas boas notícias.

O que nos trouxe a PESC ?

 

 

As boas notícias

 

Antes de mais, uma ressalva. A meu ver, nunca será excessivo salientar que graças ao seu próprio caminho de integração, a Europa tem conhecido o período de paz mais longo da sua história. São já, pelo menos, três as gerações consecutivas de cidadãos europeus que tiveram a felicidade de nascer e viver sem afrontarem directamente as atrocidades das guerras fratricidas, a violência gratuita e a barbárie.

Agora a questão que se coloca é: terá, com este projecto, a Europa contribuído também para transformar o mundo?

Pessoalmente, entendo que sim porque a União não tem permanecido fechada sobre si, confinada ao continente europeu, mas tem antes vindo a moldar, com os seus princípios e valores, a cena internacional, dando um contributo significativo para a consolidação das condições de paz no mundo.

Gostaria de frisar este último ponto, porque o carácter ainda irregular e por vezes disperso da actuação da União Europeia, e o seu peso ainda insuficiente como actor eficaz da mundialização, nos fazem por vezes subestimar a sua intensa acção externa.

Neste plano, não devemos esquecer que a União é o primeiro prestador mundial de ajuda pública, desenvolvendo um vasto quadro de cooperação que visa não só integrar esses países na economia mundial, como fomentar o seu desenvolvimento sustentado, através da utilização de critérios inovadores, que ultrapassam o simples binómio comércio-assistência.

Por outro lado, primeira potência comercial do mundo, a União Europeia tem desempenhado um papel de relevo no fortalecimento do sistema de comércio internacional e na sua regulação, designadamente no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Também no contexto das instituições financeiras internacionais, a Europa tem sabido afirmar-se como um actor influente, contribuindo para o estabelecimento de políticas mais adequadas às necessidades dos países em vias de desenvolvimento, nomeadamente no campo da educação, da saúde e da luta contra a pobreza.

Por tudo isto, disse uma vez e reafirmo aqui que a União Europeia constitui um modelo quase perfeito de “contribuinte líquido” para a paz no mundo. Antes de mais, porque se tem construído no pressuposto de que a paz durável repousa na realização universal do direito de todos a uma vida digna. Depois, porque se fundamenta na ideia de que a paz passa, antes de mais, pela prevenção dos conflitos e, se for caso disso, pela sua resolução no respeito pelo direito internacional. Em terceiro lugar, porque a própria União Europeia assenta no valor da diferença e da diversidade quer seja religiosa, étnica, nacional ou cultural, na concepção de que a diversidade não é uma ameaça, mas antes um factor de enriquecimento conjunto e recíproco, constituindo o respeito pela diversidade um princípio fundamental da paz.


Por último, porque a União Europeia também percebeu que a paz não se impõe, mas vive-se colectivamente e que, não sendo um estado natural e espontâneo, se deve cultivar e promover todos os dias, através de uma pedagogia permanente e de acções concretas que a credibilizem.

Na difícil realização destes exigentes princípios, a Europa tem somado algumas vitórias, que são sinais de esperança e pequenos passos na via da sua afirmação no mundo, pela sua capacidade de intervenção diplomática. Penso no Protocolo de Quioto. Penso na luta internacional contra o terrorismo. Penso na Cimeira sobre o Desenvolvimento Sustentável. E penso, claro, na criação dos Tribunais Internacionais ad-hoc (ex-Jugoslávia, Ruanda, Serra Leoa) e do Tribunal Penal Internacional Permanente, o qual representa, a meu ver, um marco decisivo na história da luta pela defesa dos direitos humanos e pela promoção de um verdadeiro direito humanitário internacional.

Outras situações pontuaram o trajecto percorrido pela União Europeia, confrontada com a exigência de promover uma efectiva capacidade de intervenção para a PESC, a que se tem procurado dar uma maior coerência institucional, outra flexibilidade, e úteis expedientes coordenadores, como as estratégias comuns.


Lentamente, mas estamos afinal a falar de um domínio sensível das soberanias nacionais, algumas decisões abriram caminho nestes últimos anos a um desejável progresso da Politica Europeia de Segurança e Defesa, nomeadamente pelo estabelecimento de um órgão político-militar permanente (COPS), pela criação de uma Força de Reacção Rápida e de um Corpo de Polícia Europeia.

Não obstante as dificuldades de um método decisório vinculado a lógicas intergovernamentais, foi possível à União melhorar a credibilidade do seu valor de intervenção diplomática na cena internacional, ao destacar forças militares para a Bósnia, a Macedónia, e a República Democrática do Congo, ultrapassando assim os terrenos de soft power a que geralmente se tem confinado.

 

 


As más notícias

 

 

A questão que agora se coloca é: não obstante todos os progressos realizados, são os resultados obtidos globalmente satisfatórios? Como actor eficaz na adequada regulação da globalização económica? Na redução das disparidades de desenvolvimento a nível mundial? Na luta internacional contra o terrorismo? Na prevenção dos conflitos? Na redução das tensões mundiais? Na protecção do ambiente? Na preservação da diversidade cultural?

Não cabe naturalmente aqui proceder à inventariação dos fracassos, insuficiências e do muito que falhou, lançar em colunas de deve e haver o que constituiu o seu itinerário principal.

Lembremos então as insuficiências de intervenção. O catálogo seria longo pois entre tantas outras coisas importaria ao menos aludir à crise iraquiana; ao conflito israelo-palestiniano; à questão iraniana; ao caso da Coreia do Norte; aos notórios erros praticados no combate anti-terrorista, de que são exemplo designadamente o tratamento dado aos prisioneiros de Guantanámo; à persistente incapacidade da Europa em relançar as suas relações com África, por forma a dar um contributo significativo para vencer a séria e complexa crise de desenvolvimento com que aquele continente se depara, bloqueada afinal por problemas de raiz bilateral que não deveriam prejudicar a actuação da União Europeia enquanto tal; às perigosas estratégias de hegemonia fundadas na gestão de importantes recursos naturais; à incapacidade política em encontrar respostas adequadas às prementes questões ecológicas do planeta.

Limitar-me-ei, pois, a frisar que as lacunas em política externa são graves e preocupantes. Conhecemos as dificuldades e as resistências que tem suscitado e, convenhamos, o descrédito que sobre ela impende pela pouca frequência de acções concretas, apesar de as opiniões públicas europeias manifestarem em geral uma posição relativamente favorável ao reforço do peso da Europa no mundo e do seu papel na cena internacional.


Não creio naturalmente que seja possível desde já pensar na comunitarização da política externa e de defesa. Mas reputo imprescindível proceder a uma maior integração política destas matérias, para além de uma melhor coordenação das políticas externas nacionais e das diplomacias europeias, para além de uma definição mais frequente e célere de posições e de acções comuns, para além do necessário aperfeiçoamento das regras de decisão aplicáveis a estas matérias.

É necessário apostar no desenvolvimento de estratégias e programas de acções concretas e eficazes de política externa comum, bem como, no plano da defesa, de programas de política de defesa comum. Este é um outro ponto, a meu ver prioritário. Sem operacionalidade militar, sem capacidade autónoma, sem armamentos e equipamentos adequados, sem um sistema de informações próprio, sem a disponibilização de recursos orçamentais no domínio militar à altura das necessidades, a Europa não passará de um gigante com pés de barro.


Não será fácil, até porque as opiniões públicas dificilmente sufragam o aumento das despesas militares, mas é um caminho indispensável para que a Europa se possa afirmar na cena internacional. Note-se que ao reclamar mais meios para a defesa europeia, o objectivo é apenas o de os tornar consentâneos com os fins estratégicos prosseguidos, tal como expressos na Estratégia Europeia de Segurança, adoptada em 2003, e nunca alimentar o mito de que se pretende constituir uma força militar europeia comparável e/ou concorrente à americana. A meu ver, trata-se, sim, de colmatar o hiato existente entre a situação estratégica objectiva da União Europeia e a sua capacidade real de a garantir.

Levámos cerca de cinquenta anos para dispormos de uma moeda única, mas valeu a pena. Quero acreditar que, em relação à Política Externa de Segurança e Defesa, conseguiremos idênticos resultados, mesmo se para tal tivermos de recorrer a um modelo diferenciado de integração europeia.

Impõe-se por isso que tenhamos a coragem, primeiro, de assumir os fracassos, e depois, de corrigir as falhas. Não nos podemos continuar a contentar com manifestações de retórica e declarações de intenção grandíloquas quando a realidade se encarrega de as desmentir, confrontando-nos com uma certa ausência da União Europeia na cena internacional.

Entendo que esta é uma tarefa urgente que nos cumpre levar a cabo, porque os desafios da mundialização, as novas ameaças e as crises internacionais não se compadecem com lacunas desta natureza.

 

Ponto 2 – Porque é que a União Europeia pode desempenhar um papel único no nosso conturbado tempo de globalização e de múltiplas tensões ?

 

Na evolução da integração europeia, a vontade política em conferir-lhe uma nova dimensão em matéria de política externa e de segurança comum está bem patente desde o Tratado de Maastricht, como vimos anteriormente, orientação posteriormente confirmada em Amesterdão.

Os fundamentos da criação de uma tal política radicam, sem dúvida, na percepção de que, a par do seu peso económico, a Europa deve ter um protagonismo político correspondente a esse estatuto.

A questão fundamental que, neste particular, se coloca é, no entanto, a de saber que papel realmente pretendemos para a Europa no nosso mundo de hoje e que bases queremos para a identidade política europeia face ao exterior.


Contentar-nos-emos em prosseguir os genéricos objectivos que o Tratado da União, tal como completado pelo de Amesterdão e Nice, estipula para a PESC – a saber: “a salvaguarda dos valores comuns, dos interesses fundamentais, da independência e da integridade da União; o reforço da segurança da União; a manutenção da paz e o reforço da segurança internacional; o fomento da cooperação internacional; o desenvolvimento e o reforço da democracia e do Estado de Direito, bem como o respeito pelos direitos do Homem e das liberdades fundamentais” (artigo 11.º do Tratado de Nice)?

Contentar-nos-emos em aperfeiçoar os instrumentos à disposição da União (as chamadas acções, posições e estratégias comuns, as declarações e a celebração de acordos internacionais), remetendo-a para um estatuto mole de soft power – através do comércio, do direito, da norma e do exemplo ?

Como bem lembra H. Védrine, no seu recente opúsculo, “Continuar a História”, tal seria ter interpretado mal Joseph Nye, para quem o soft e hard powers não são afinal dissociáveis.

Mas tal seria também não perceber que o actual momento de recomposição da ordem mundial, que os desafios da globalização, a crescente afirmação dos extremismos e a polarização dos conflitos mundiais exigem que a Europa se torne, antes de mais, um actor global, assumindo uma liderança firme na cena internacional.

A meu ver, já não basta que a Europa se afirme como potência regional nem que se desenvolva como mero pilar europeu da NATO. Entendo que, nesta área, a ambição dos europeus deveria continuar a ser a de se afirmarem como força à escala mundial, no quadro de uma compreensão abrangente da segurança, que exige uma diferente e mais estreita cooperação para fazer face a um mundo em acelerada mutação.

Recorde-se, de facto, que a presente ordem internacional deve gerir uma realidade que, embora se tenha já manifestado em outras épocas da História, assume agora uma inédita força que molda novas atitudes e a própria distribuição de poderes: a globalização.

Sabemos em que consiste, mas valerá a pena assinalar alguns dos seus aspectos: a compressão do espaço e do tempo pela via do avanço tecnológico do sector das comunicações, a qual, pelo acelerar de contactos entre sociedades, culturas, indivíduos e sistemas jurídicos conduz a uma crescente densificação das interdependências; o estabelecimento de um espaço público de dimensão planetária, alimentado por uma omnipresente sociedade da informação e por novos actores internacionais que se têm apropriado de terrenos de influência, antes monopólio dos Estados; a brusca expansão de questões de amplitude global, desde os quase incontroláveis fluxos de capitais aos diversos tráficos, da porosidade das fronteiras ao domínio de pressões culturais hegemónicas.

Consolidaram-se, assim, tendências anteriores que hoje marcam o nosso viver: o declínio do Estado-Nação, cujo ocaso alguns apressadamente profetizam, mas que os acontecimentos posteriores ao 11 de Setembro desmentem na suas formulações mais excessivas; o enfraquecimento dos governos nacionais face a uma bem mais livre actuação das grandes corporações económicas; a permeabilidade dos países às clandestinas tramas da criminalidade transnacional; as preocupantes projecções securitárias nos direitos individuais; o alargamento do fosso entre as nações que beneficiam da globalização e aquelas que se vão enleando nas suas carências, de que as dolorosas imagens quotidianas das migrações anárquicas constituem amarga ilustração; a crescente importância das ONG, apesar  da persistência de ambiguidades do seu modelo de representatividade; ou a proliferação de movimentos – muitas vezes de expressão radical e extremista, mas com elevado poder de mobilização –  que contestam com vigor as omissões dos governos quanto a alguns efeitos predadores da globalização, configurando-a como um instrumento de dominação económica e veículo de estratégias de hegemonia cultural.


Como então fazer face a esta imparável realidade? Por mim, só vejo um caminho possível, o do reforço do sistema multilateral, como decisivo elemento regulador e indispensável quadro jurídico de mediação das relações internacionais. A meu ver, é este o único caminho possível para conter tentações de hegemonia e opções unilateralistas, que só podem avivar tensões e conflitos e agravar o clima de polarização em que se vive actualmente.

Ora, neste quadro de análise a União Europeia parece bem posicionada para poder desempenhar um papel de relevo na esfera internacional.

Primeiro, a dissolução do mundo bipolar abriu à União europeia novas e mais amplas possibilidades de afirmação na cena internacional. Encurralada, durante a guerra-fria, entre as duas superpotências, ela adquiriu desde então um potencial muito maior de acção estratégica.

Em segundo lugar, a União Europeia tem uma visão da sociedade internacional essencialmente cooperativa e multilateral, que, aliás, espelha a sua própria maneira de funcionar internamente.


Por último, pela razão fundamental de que a União Europeia é já em si um projecto de aliança de Estados e povos, em que a diversidade cultural, linguística, religiosa, política e étnica, é simultaneamente uma premissa e uma corolário, a matriz deste modelo e o seu paradigma. Por conseguinte, sendo um actor político construído, a União Europeia só pode avançar em política externa através de negociações e consensos internos, o que, se comporta riscos acrescidos, encerra, no entanto, também enorme riqueza e potencial.

Este é um ponto crucial e que marca o carácter ímpar da União Europeia como actor de política externa. Embora tenha sido no mundo grego que nasceu a chamada “civilização europeia”, na qual assenta a unidade do projecto europeu, a verdade é que este configura uma ideia nova de Europa e é um ideal, antes de ser uma realidade ou um dado confinado a delimitações de ordem geográfica.


A Europa é um produto da história, mas também da vontade dos homens. Neste projecto, nascido na orla do mediterrâneo, cruzam-se a herança greco-latina, mas também o sonho de Alexandre que ambicionava fundir os povos num império universal bem como Roma que personifica este mito; a tomada de Constantinopla e a sua integração no Império Otomano, que levou à assimilação da Europa com o “Ocidente”; a Europa dos cristinanismos e da reforma; a emergência das nações e da afirmação política dos Estados-Nação; a Europa das Luzes, da liberdade, da democracia e dos direitos humanos; a Europa secular e da laicidade, em que César e Deus se reclamam de cidades diferentes; a descolonização, o fim da Europa como o centro do mundo e a sua “continentalização”; a bárbarie das guerras mundiais e a sua divisão em blocos antagónicos durante quase meio século.

A meu ver, tudo isto faz da Europa um actor de política externa completamente sui generis, inclassificável porque para além de todas as categorias tradicionais em que se dividem os Estados, para além de todas as novas categorias identificadas de agentes internacionais.


Por isso, acredito também que à Europa cabe um papel fundamental na inviabilização da tese do choque de civilizações.

Mas para tal, a Europa tem de superar o que tem sido até á data um traço marcante da sua natureza: oscilando entre dinâmicas concretizadoras e bloqueios decisórios, entre instantes de reforçada confiança e momentos de crispado abatimento. Assim ocorreu, apenas para citar alguns dos casos mais significativos, com o sucesso da criação e posterior lançamento do euro, verdadeiro instrumento federador; com a recomposição do mapa europeu, através da importante decisão geopolítica configurada pelo último alargamento; ou, no sentido oposto, com a desavença diplomática suscitada pela guerra no Iraque; e, naturalmente, com os resultados negativos dos referendos sobre o Tratado Constitucional na França e nos Países Baixos.

Nesta perspectiva, torna-se absolutamente indispensável superar a crise que durante a segunda metade desta década tem sacudido a União e que põe a descoberto diferentes visões sobre as finalidades últimas do projecto, falhas no indispensável cimento de confiança que deve ligar os seus membros, afloramentos negativos de egoísmos nacionais, e claras insuficiências na busca negocial e na concretização de compromissos fomentadores de cooperações e unidade. Refiro-me obviamente à questão do Tratado Constitucional.


Não me parece que a União possa, por mais tempo, adiar o desafio que a História lhe coloca e que obriga dirigentes e povos a desatar o nó do actual bloqueio institucional – isto é, a definir o seu futuro. Terá que fazê-lo resguardando o essencial de uma unidade que tem sido garantia de progresso, sem dúvida. Mas não permitindo também ficar enredada num diminuído pequeno denominador comum, que lhe retira capacidade de acção, lhe rouba ambição e a demite das responsabilidades que os europeus lhe confiaram. Não nos resignemos a ser espectadores passivos de um mundo que nos escapa. Ousemos querer também para os outros povos aquilo que a Europa nos tem trazido, a nós os sues cidadãos –  paz, direitos e desenvolvimento.

 

 Muito obrigado a todos.

 

30 anos de Poder Local

March 8, 2007
Universidade do Minho
Centro de Estudos Jurídicos do Minho
Braga, 8 de Março de 2007
«CICLO DE CONFERÊNCIAS COMEMORATIVO DOS 30 ANOS DE PODER LOCAL»

Sessão de encerramento

Discurso de Jorge Sampaio

 

Senhor Presidente do CEJUR, Professor Cândido de Oliveira

Senhores Conferencistas

Minhas Senhoras e meus Senhores

 

Penalizando-me por não ter podido estar presente no Ciclo de Conferências comemorativo dos 30 anos de poder local, que teve lugar em Dezembro último, foi com todo o prazer que prontamente aceitei participar nesta sessão de lançamento da obra que contém os textos das referidas intervenções.

Não só porque ao longo dos mais de 30 anos que levo de vida ao serviço da causa pública, sempre considerei o poder local, a diversos títulos e em distintas situações, indissociável do exercício democrático; mas também porque entendo que o poder local é um factor de estabilidade do regime político e de alavancagem do desenvolvimento do país.

Não querendo, naturalmente, repetir-me, procurarei apenas nesta breve intervenção que farei, sublinhar alguns desafios que o poder local deverá afrontar no futuro, que me parecem merecer destaque, de que seleccionarei três:

 

– Pensar global, agir localmente – reforçar o princípio da subsidiariedade

– Amanhã começa hoje – apostar no desenvolvimento sustentável

– Aprofundar a democracia através do reforço da cidadania

*

Pensar global, agir localmente

Em tempo de globalização, marcado por uma crescente interdependência das economias e das relações políticas, sociais e culturais entre os povos, a questão do Estado é um dos temas centrais das democracias europeias.

O Estado liberal e republicano, de que o nosso é directamente herdeiro, é um modelo estatal que exprime uma concepção unitária da nação, construída por afirmação contra a prevalência de um sistema de privilégios, contra a desigualdade perante a lei, contra os poderes periféricos e a insuficiência de representação nacional.

Mas consolidado o Estado moderno na suas funções garantísticas da igualdade perante a lei, das liberdades fundamentais e da solidariedade nacional, a tendência das últimas décadas, na Europa, tem sido descentralizadora.

Foi o 25 de Abril que permitiu a Portugal integrar este movimento de descentralização pois, como é sabido, o poder local é, antes de mais, um resultado feliz da Democracia.

Acredito que o reforço e o aprofundamento da via descentralizadora fará mais pela harmonização e pela solidariedade do que o centralismo. Tenho afirmado a convicção de que um sistema administrativamente descentralizado é um sistema politicamente mais justo e administrativamente mais eficaz.

Mas na ânsia de dar justa e justificada resposta à necessidade de descentralização administrativa, e como tal proceder à reforma das funções do Estado, é ainda importante não perder de vista que muitas das suas características são essenciais e continuam válidas, não devendo, por consequência, ser postas em causa.

Na verdade, se a desconcentração e a descentralização me parecem necessárias, por razões que me dispenso de referir, por sobejamente debatidas, igualmente me parece necessário garantir o exercício de um Estado forte, capaz de assegurar a coesão nacional e de definir as grandes prioridades de desenvolvimento do país. Este é o equilíbrio por onde passará uma das vertentes da reforma da Estado moderno.

 

Qualquer um dos extremos, centralização excessiva ou descentralização desnecessária, me parecem inconvenientes para o país. Gradualismo e concertação parecem ser a chave para uma reforma equilibrada dos poderes.

Importa, por outro lado, que as populações se revejam na progressiva evolução do modelo, que o consolidem, garantindo a sua constante e necessária participação democrática. É aconselhável, portanto, que todas as reformas mantenham sistemas de representação que consolidem e se possível ampliem os actuais mecanismos de integração dos cidadãos no processo democrático.

Na realidade, o nosso tempo é marcado por uma crescente exigência de proximidade dos cidadãos em relação àqueles a quem confiaram, pela eleição, a responsabilidade de resolver os problemas do seu bem‑estar e qualidade de vida. É o tempo de uma nova ambição de participação das populações nas decisões que mais directamente as afectam, no quadro democrático. É também, por isso mesmo, um tempo em que se reclama aos poderes públicos que se organizem efectivamente, aos diversos níveis, de acordo com o princípio da subsidiariedade, entendido no sentido de que, “o exercício das responsabilidades públicas deve incumbir, de preferência, às autoridades mais próximas dos cidadãos”, tendo em conta a natureza das tarefas a desempenhar e as exigências de eficácia e economia, conforme prescreve a Carta Europeia da Autonomia Local.

Aliás, a meu ver, o princípio da subsidiariedade aplica-se não só ao escalão da governação nacional e local, mas também no plano mundial e, com maioria de razão, europeu. A consideração dos vários escalões de governação tornou-se um imperativo, por força quer da globalização quer dos movimentos de integração regional, como é o caso paradigmático da União Europeia, a que pertencemos.

As experiências de desenvolvimento centradas no local estarão condenadas a morrer, se não estiverem articuladas entre si e com as políticas de âmbito nacional, se não se inscreverem numa matriz integradora de nível regional, se não levarem em devida consideração a dinâmica criada pela integração europeia.

Mesmo para agir localmente, importa pensar sempre globalmente porque é cada vez maior o número de problemas que, embora possam requerer soluções locais, revestem uma dimensão transversal com carácter nacional, regional, ou até, global.

Por isso, adquire essencial importância o princípio da subsidiariedade para assegurar, em cada circunstância, não só o nível mais apropriado de decisão, mas também o seu enquadramento num contexto de imparável globalização e de internacionalização. Nenhuma sociedade, nem comunidade, se pode alhear do meio exterior em que evolui. Esta é a complexidade intrínseca do nosso tempo.

É neste contexto que as administrações locais se confrontam hoje com um número crescente de responsabilidades, sob a pressão criada por um vasto conjunto de novas áreas em que são constantemente chamadas a intervir e em relação às quais nem sempre dispõem dos instrumentos e meios adequados para assegurar uma adequada actuação.

Os governos procuram novas opções, reformulando funções e competências, trilhando o estreito caminho entre o desenvolvimento de novos limiares de subsidiariedades – quer em relação às instâncias comunitárias quer em relação às administrações locais ou regionais –  e o debate, aliás tenso, sobre o desinvestimento do Estado em funções – sobretudo sociais – que  lhe estavam confiadas.

Em suma, direi que estamos perante uma encruzilhada em que se tratará de definir novos e dinâmicos equilíbrios entre os vários escalões de governação, na certeza de que, por um lado, é ao nível do poder local que os cidadãos mais serão tentados a ser exigentes e a reclamar responsabilidades e de que, por outro, é também a este nível que serão mais visíveis os efeitos – positivos e negativos – da articulação e do jogo de forças entre o nível supranacional e nacional.

 

O amanhã começa hoje: o desenvolvimento sustentável

 

Como exemplos de novas áreas de intervenção em que se espera que os municípios exerçam uma política activa, referiria o da valorização do património natural e construído, na dupla perspectiva, por um lado, do desenvolvimento sustentável e, por outro, de defesa da memória colectiva e de poupança de recursos escassos. Ou seja, não se trata apenas de recuperar patrimónios no sentido de uma cultura de excepção, mas de os requalificar em função das pessoas, dos seus laços com os sítios, das suas memórias, da sua identificação enquanto membros de uma comunidade. Cuidar da herança das paisagens, das pedras e das pessoas, deve ter prioridade sobre o começar tudo de novo à custa de recursos não renováveis, de novas infra-estruturas e novas edificações, e, sobretudo, de novas raízes, que as pessoas por vezes penosamente terão que forjar.

Por outra parte, é absolutamente necessário que as populações e os agentes económicos incorporem nos seus interesses a noção de desenvolvimento sustentável e apreciem soluções duráveis, ainda que menos espectaculares, e criadoras de sinergias entre centro e periferia, entre público e privado.

É preciso cuidar do ordenamento do território e da humanização dos espaços habitados, designadamente urbanos. Este é um desafio de civilização, pois desse ordenamento dependem a qualidade de vida das pessoas e as próprias condições de afirmação da cidadania.

Fenómenos como o estrangulamento das acessibilidades, o envelhecimento dos núcleos históricos, a exclusão social e a marginalidade impõem aos responsáveis autárquicos a definição de políticas orientadoras globalmente fundamentadas, susceptíveis de contrariar a tendência para a degradação da vida nas periferias das grandes cidades.

Mas os instrumentos renovadores da vida urbana são igualmente indispensáveis para a afirmação dos núcleos de menor dimensão, que travam uma luta de quase sobrevivência contra a desertificação e a litoralização.

A fixação e atracção de populações nestas zonas, fundamental para o equilíbrio do conjunto do espaço geográfico e humano nacional, impõe uma extensa qualificação dos recursos à disposição dos concelhos com mais pequenos núcleos urbanos.

A atenção aos recursos humanos é pois um dos temas que não pode deixar de ocupar lugar cada vez mais central na agenda política dos autarcas. Refiro-me à sempre mais premente e necessária intervenção social do poder local. O desemprego, a pobreza e a exclusão ocorrem na generalidade do território e não são problemas apenas das grandes metrópoles. Mas penso também nos domínios da educação e da formação, nos quais aliás se suscitam múltiplos planos de complementaridade entre a administração local e a administração do Estado.

Nunca me cansarei de repetir que o desafio da educação e da formação é absolutamente crucial para o desenvolvimento do nosso país. É necessário levar a sério a ideia de que os estabelecimentos de ensino e de formação são parte fundamental dos serviços públicos de bem-estar e, portanto, devem ser apoiados por todos os outros elos da rede de protecção social dos cidadãos. As autarquias podem desempenhar um papel importante na articulação entre o sistema regular de ensino, o subsistema de formação profissional e a rede empresarial, enquanto motores últimos da inovação. Só assim será possível aproveitar melhor as qualificações existentes e apostar na requalificação da sua mão-de-obra, reforçar a capacidade produtiva e concorrencial.

Em todas estas questões, importa ter presente a problemática do desenvolvimento, dos seus modelos, da sua sustentabilidade e, deste modo, da sua responsabilidade social, intra e inter-geracional.

Quando me refiro a desenvolvimento sustentável quero significar uma visão ampla e solidária do Portugal moderno. Uma solidariedade que tem numa concepção alargada de território a sua base de apoio.

Ou seja, pretende-se uma consideração do território que olhe de frente para os problemas da agricultura e das florestas, que reconheça a necessidade de estudar e proteger a diversidade biológica, conservar a fauna e a flora, os rios e mares bem como a variedade das nossas paisagens.

A solidariedade, que não é dissociável do ambiente e do desenvolvimento sustentável, implica também um adequado ordenamento do território, abrindo caminho para uma boa distribuição das actividades económicas, das vilas e cidades, que nos permita o correcto uso dos recursos naturais, do solo, da água, do ar, numa perspectiva de equidade social e regional, sem esquecer o nosso dever de deixar às gerações futuras um país de que também se possam orgulhar.

Mas, para isso, é preciso mudar velhos hábitos e vencer preconceitos. É preciso pensar no longo prazo. É preciso reconhecer o papel da ciência e do conhecimento. É indispensável repensar a coordenação das políticas públicas. É preciso desenvolver uma cultura cívica do diálogo e da cooperação, vencendo a nossa tradicional propensão para a quezília mesquinha e paralisante.

Nos últimos anos, a ideia de sustentabilidade do desenvolvimento tem penetrado praticamente todos os sectores da vida pública e faz parte das agendas dos órgãos políticos, das empresas e das organizações não-governamentais. A consolidação desta orientação passa por uma prática sempre mais exigente, em que o contributo do poder local não é de forma alguma dispensável. Por isso, é necessário que as autarquias disponham, para poderem responder eficazmente a estes cruciais desafios, de instrumentos jurídicos, técnicos e financeiros adequados. 

Mas é óbvio que os órgãos eleitos locais não podem ficar indiferentes ou à margem dos grandes desafios civilizacionais com que estamos confrontados. O desenvolvimento não se resume à componente do crescimento, tem que ser visto numa perspectiva pluridimensional, de desenvolvimento sustentável.

 

Aperfeiçoar a democracia através do reforço do poder local

Como tenho frisado frequentemente, o poder local, apelando à participação das populações e exercendo funções em grande proximidade com as pessoas, tem sido uma autêntica escola de cidadania que acumulou um capital de confiança da maior importância para a democracia portuguesa.

Os eleitos locais são porta-voz e mediadores dos interesses das comunidades. Eles dão corpo a uma das formas de representação política em que a dimensão de responsabilização directa e de resposta imediata às expectativas das populações são, porventura, mais exigentes.

O balanço de 30 anos de poder local permite, no meu entender, destacar o contributo positivo e sólido dado ao combate a tantas dificuldades nacionais que o centralismo do Estado não estava em condições de travar. Não quero, com isto, dizer que foram resolvidos de forma satisfatória todos os problemas, longe disso.

Mas, a confiança dos cidadãos no poder local, construída ao longo de anos, é um dos factores de estabilidade do regime político. A manutenção dessa confiança na evolução da repartição de competências administrativas é por isso essencial.

Apesar do catastrofismo de algumas análises e atitudes perante o poder local, multiplicam-se os sinais de que os cidadãos se sentem melhor representados por aqueles que lhes estão mais próximos, que estão mais disponíveis para os ouvir e para procurar respostas para as suas necessidades. Eu direi mesmo que as pessoas sentem que essa relação de maior proximidade com os eleitos torna mais eficaz a sua crítica a aspectos concretos da actuação política local.

Esta percepção representa um capital de confiança essencial para a democracia, que deve ser aprofundado e não descredibilizado. Por isso, por um lado, parece-me injusto e despropositado o lançamento de suspeições generalizadas sobre os autarcas, que inquestionavelmente desempenham as mais relevantes funções políticas num quadro de serviço público particularmente exigente e de, por vezes, bem desconfortável visibilidade. Mas, por outro, reconheço certamente que é necessário criar condições para uma intensificação da confiança dos cidadãos no poder autárquico. Para tal, importa combater por todos os meios comportamentos duvidosos, como a especulação de terrenos e imobiliária, o urbanismo desenfreado e todas as formas de corrupção que, como sabemos, têm contribuído para desbaratar o capital de confiança nas autarquias.

Mostrei-me favorável, num tempo em que tal não se tinha ainda tornado corrente, a uma reponderação do modelo de organização do poder local, no sentido de adoptar formas mais directas de avaliação e de fiscalização do seu exercício. A expectativa das populações relativamente às suas autarquias e aos seus autarcas é muito elevada. Mérito sem dúvida do sistema de autonomia local e dos seus protagonistas. Este reconhecimento é exigente. Afinal os cidadãos sabem que a sua qualidade de vida depende em múltiplos aspectos da actuação do poder local.

A vida política democrática joga-se na articulação entre as instituições e as preocupações e ansiedades do quotidiano. O poder autárquico é actor fundamental, não um espectador ou um mero beneficiário, deste processo de revigoramento democrático, através da aproximação entre o Estado e os cidadãos.

Não creio enganar-me se disser que Portugal não pode dispensar o exercício de um Estado forte como factor de coesão nacional. Mas, parece-me também que necessita do reforço do poder local, como irrecusável factor de desenvolvimento e de aprofundamento da Democracia.

Muito obrigado a todos.

 

Dia da Faculdade de Medicina do Porto

February 28, 2006
FACULDADE DE MEDICINA DO PORTO  
“Globalização de problemas de saúde e da sua solução” 

Conferência proferida pelo Dr.  Jorge Sampaio por ocasião do Dia da
Faculdade de Medicina
Porto, 28 de Fevereiro de 2006 

 

Ilustres Professores e Médicos

Estimados alunos

Caros amigos

 

Permitam-me que comece por agradecer à Universidade do Porto, nas pessoas do seu Magnífico Reitor, Professor Marques dos Santos, e do Director da Faculdade de Medicina, Professor J. Agostinho Marques, o tão honroso convite para intervir como orador neste Dia da Faculdade, de significado tão especial para todos os presentes. Foi um gesto de amizade que muito me sensibilizou, tanto mais que não sendo médico de formação, tenho uma enorme admiração por aqueles que exercem ou se dispõem a exercer esta nobre e exigente profissão.

Como porventura alguns saberão também, ligam-me ao universo da medicina laços de família – o meu pai, formado nesta Faculdade e que, mais tarde, se especializou em saúde pública; o meu irmão que optou pela psiquiatria. Esta circunstância, aliás, marcou de certa forma a minha infância e juventude porquanto em casa eram frequentes as conversas em torno dos grandes problemas da altura e o da saúde pública estava, sem dúvida, entre eles. Mas as marcas foram mais duradouras pois ao longo de toda a minha vida, nunca a saúde deixou de fazer parte das causas políticas por que me bati.

Porventura biógrafos de inspiração freudiana verão nisto o resultado de um qualquer processo de sublimação. Pela minha parte, contento-me em assegurar-vos que se trata de uma convicção pessoal e de uma forte militância e não hesitarei nunca em afirmar que, a meu ver, a saúde – tal como aliás, a educação – é uma questão de direitos humanos, que importa continuar a reclamar para todos, porquanto a realidade teima em marcar passo e a universalidade destes direitos básicos está ainda por realizar para muitos milhões de indivíduos neste nosso século XXI.

Por ironia do acaso ou oculto desígnio da vida, quando acabei o meu segundo mandato como Presidente da República, em Março do ano passado, fui convidado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas para seu primeiro Enviado Especial para a Luta contra a Tuberculose, funções que tenho exercido desde Maio último.

Confesso que inicialmente fiquei surpreendido com a proposta – como poderia um não médico como eu contribuir utilmente para a luta contra a tuberculose no mundo ? E a tuberculose – como e porquê  esta doença, que eu conotava com um mal do passado, aliás erroneamente ?

Prosseguindo com esta maré de confissões, faço ainda notar que foi o reconhecimento da minha própria ignorância acerca da tremenda actualidade desta pandemia que rapidamente dissipou todas as dúvidas e me levou a abraçar a defesa desta causa global.

Aceitei estas funções porque justamente a luta contra as doenças infecciosas é, previamente a tudo, uma causa política, muito antes de ser uma questão médica. Porque, pelas suas dimensões de pandemia curável, a tuberculose é, em primeiríssima linha, matéria política, questão de interesse geral, preocupação de segurança e problema de desenvolvimento.

Tudo isto ao arrepio do que tantos meios de comunicação social supõem quando – quase candidamente – me perguntam : mas o que vai fazer para curar os tuberculosos ? Como os vai tratar ? Vai abrir sanatórios ? Vai vacinar ? Vai começar por onde ?

Foi pensando nestas e noutras questões que me pareceu interessante centrar a minha intervenção na ainda curta, mas intensa, experiência como Enviado Especial para a Tuberculose e, através dela, tratar a problemática que me foi solicitado abordar aqui – “A globalização dos problemas de saúde e da sua solução”.

 

Dividi-la-ei em 3 partes:

 

1- A inclusão das questões da saúde na agenda mundial, um avanço primordial;

2- As urgências não esperam – as 3 grandes pandemias globais;

3- A saúde pública global como uma questão de desenvolvimento sustentável;

 

I- A inclusão das questões da saúde na agenda global: um avanço primordial

 

Penso que todos concordam que as questões da saúde estão hoje solidamente inscritas na agenda global do desenvolvimento, sendo a Saúde pública cada vez mais encarada como um Bem Público Global.

Num mundo cada vez mais globalizado, marcado por migrações e por rápidos movimentos de pessoas à escala mundial, a problemática da saúde adquiriu uma clara dimensão transnacional uma vez que a situação sanitária em cada país não é independente do que se passa além fronteiras. O exemplo do controlo e prevenção das doenças transmissíveis é a este respeito bem claro.

Uma outra vertente que deve ser levada em consideração é a do impacto económico de uma determinada pandemia no desenvolvimento de um país. Basta pensar no caso do HIV-SIDA em alguns países africanos que, dizimando a população jovem, torna a mão-de-obra escassa, reduz a produtividade, desencoraja o investimentos e a poupança. No Botswana, por exemplo, onde se regista a mais alta taxa de incidência de HIV-SIDA, estima-se que, como consequência, o rendimento deste país será cerca de 33% a 40% mais baixo em 2010. No caso da TB, por outro lado, calcula-se que nos países mais afectados, esta pandemia seja responsável por um decréscimo anual do PIB de cerca de 4%.

A tomada de consciência da vertente transfronteiriça e global de certas questões de saúde tem-se manifestado na crescente atenção e esforços que a Comunidade internacional através dos seus órgãos e agências – como por exemplo, as Nações Unidas, o Banco Mundial, ou o grupo dos países do G8 -, mas também os sectores privados ou de solidariedade social, vêm dedicando à promoção da saúde pública no mundo.

Prova desta progressiva internacionalização e da centralidade das questões de saúde é claramente o facto de três dos oito Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, aprovados em 2000, na Cimeira do Milénio das Nações Unidas, lhes dizerem respeito.

A redução da mortalidade infantil, a melhoria da saúde materna e a luta contra o HIV/SIDA, a malária e a tuberculose, bem como de outras doenças infecciosas encontram-se pois entre os chamados ODMs (isto é, repito, Objectivos de Desenvolvimento do Milénio), tendo-se todos os Estados comprometido a cumpri-los até 2015.

Para além deste compromisso da Comunidade Internacional, materializável em várias programas e planos globais no domínio da saúde, deve ainda salientar-se que o empenho e o interesse por esta causa são bastante mais alargados, estendendo-se ao mundo empresarial e à sociedade civil que, sob a forma de organizações não governamentais, parcerias público-privado ou iniciativas sectoriais, têm desenvolvido uma crescente actividade e consolidado o seu papel enquanto pilares insubstituíveis de complemento da acção dos Estados e das organizações internacionais, que tradicionalmente detinham o monopólio da iniciativa em matéria de saúde pública.

Permitam-me ainda que destaque alguns exemplos. Por um lado, pela sua importância e alcance global, o da União Europeia, do G8, da Organização Mundial de Saúde e da UNAIDS. Por outro, o de determinadas instituições filantrópicas, como a Fundação Bill Gates, a Fundação Clinton e, entre nós, sem dúvida, a Fundação Gulbenkian, bem como a Global Business Coalition, liderada pelo Embaixador Holbrooke, que se têm distinguido pelo seu empenho político e esforços financeiros postos na elaboração e aplicação de programas sectoriais de saúde, de investigação e desenvolvimento de novas vacinas, medicamentos e diagnósticos.

Na verdade, creio que estes exemplos são indicadores claros de que a Saúde começa a ocupar o centro da agenda mundial, sendo assim considerada com um Bem Público Global. Ao nível internacional, tornou-se mais nítido o empenho político, desenvolveu-se uma consciência pública mais forte e há mais recursos disponíveis. A criação desta conjuntura favorável permite dar um ímpeto renovado à luta contra as doenças infecciosas, mas cria também responsabilidades acrescidas com vista à obtenção de melhores resultados. O objectivo que todos devem partilhar tem de ser “fazer mais, fazer mais rapidamente e fazer melhor”. “Mais, rapidamente e melhor”, até porque as situações de emergência não se compadecem com delongas.

II – As urgências não esperam –  as 3 grandes pandemias globais

 

Como já mencionei anteriormente, o combate às três maiores pandemias mundiais faz parte dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio.

No entanto, apesar de haver hoje mais recursos disponíveis do que dantes, apesar de existirem inúmeros programas e de ter sido constituído um Fundo especial de combate às 3 doenças – o chamado Global Fund to Fight against HIV-AIDS, TB and Malaria -, hoje, em 2007, praticamente a meio do caminho em relação à meta fixada – 2015 –para cumprir os ODMs, os progressos registados são verdadeiramente incipientes. De tal forma que não é claro que se venham a realizar no prazo previsto, pelo menos em África e na Europa, a não ser que sejam lanças novas iniciativas e tomadas medidas extraordinárias.

Só para terem uma ideia da dimensão destas 3 pandemias, lembraria que, enquanto a gripe aviária fez até agora 166 mortos, o HIV-SIDA, a TB e a Malária mataram em conjunto 6 milhões de pessoas só em 2005. Entre estas doenças infecciosas, a TB é sem dúvida o caso mais escandaloso pois só ela faz cerca de 2 milhões de vítimas mortais por ano. Ora, como sabemos, trata-se de uma doença curável, cujo tratamento normal é perfeitamente abordável, com um custo que não ultrapassa a ordem de um punhado de dólares por doente.

Não vou referir o paludismo em separado por se tratar, apesar de tudo, de uma doença à parte, causada por um parasita bem identificado e com 80% dos casos concentrados em África.

Em contrapartida, gostaria de frisar dois aspectos da tuberculose que, certamente, este auditório conhece, mas que me parecem amplamente desconhecidos do grande público e de enorme gravidade.

O primeiro diz respeito às relações entre o HIV-SIDA e a Tuberculose; o segundo prende-se com o desenvolvimento das novas formas de tuberculose multiresistente.

Começarei por evocar números porque falam por si.

Em relação ao HIV-SIDA, continuam a aumentar não só a taxa de incidência (em 2005 registaram-se 4.1. milhões de casos novos de infecção), mas também o número de pessoas que vive com HIV, o qual passou de 36.2 milhões em 2003 para 38.6 em 2005.

No que respeita à Tuberculose, a situação é idêntica: o número de casos continua a aumentar cerca de 1% por ano, tendo-se registado cerca de 9 milhões de casos novos em 2004, 80% dos quais concentrados em 22 países.

Agora a questão central é que estes números não são independentes pois estas epidemias alimentam-se uma da outra. De facto, a conjugação do HIV/SIDA e da TB produz uma sinergia nociva que tem conduzido à explosão de casos de TB em regiões de alta prevalência do HIV. Em algumas regiões Sub Saharianas, cerca de 77% dos pacientes com TB também estão infectados pelo HIV. E não obstante, há uma diferença radical entre ambas uma vez que, contrariamente ao HIV-SIDA, a tuberculose é uma doença curável. Como tolerar então que a TB continue a matar, em todo o mundo, 5.000 pessoas por dia e seja a principal causa de mortalidade das pessoas infectadas pelo HIV-SIDA ? Como continuar a aceitar que, por exemplo, só 7% das pessoas com TB sejam testadas em relação à SIDA e só 0,5% das pessoas com Sida sejam testadas em relação à TB ?

Passando agora para o segundo ponto: como ficar indiferente ao desenvolvimento de novas formas de tuberculose multiresistente e mesmo extremamente resistente, sobretudo em zonas com elevadas taxas de prevalência de HIV ? Como ignorar que há 450.000 casos novos de MDR por ano e que as taxas mais altas de MDR-TB se encontram na zona circundante da Europa – nos países da ex-URSS – , na África do Sul e na China, por exemplo ?

É bom não esquecer – embora esta audiência o saiba bem melhor do que eu, não duvido – que a TB multiresistente (MDR) e extremamente resistente (a XDR) não responde às formas clássicas de tratamento.

Por isso, é infelizmente forçoso reconhecer que a Tuberculose multiresistente coloca um grave problema de saúde pública e exige uma resposta global imediata. Agir com a máxima urgência para salvaguardar a saúde pública mundial é absolutamente indispensável. Não esqueçamos que as emergências não esperam.

 

III- A saúde pública global como uma questão de desenvolvimento sustentável

 

Antes de concluir, gostaria ainda de tecer algumas considerações que me são caras e que me parecem indispensáveis, se se quiser perceber até que ponto a saúde pública é não só uma questão de direitos humanos, mas também um desafio civilizacional do século XXI.

É sabido que a globalização trouxe um ritmo de crescimento económico ímpar. Mas com ela produziu-se também um colossal aumento das desigualdades. De facto, aumentou o fosso entre os países ricos e pobres, bem como dentro de cada um deles, entre as populações mais ricas e as mais pobres. O quarto da população mundial mais rica viu o seu rendimento aumentar seis vezes durante o século, ao passo que o rendimento do quarto mais pobre apenas triplicou.

Deve também notar-se que nem todos os países reagiram da mesma forma às oportunidades da globalização. Em alguns países – especialmente na Ásia – encetou-se desde 1970 um movimento de aproximação dos rendimentos per capita dos países industriais. Noutros – um grupo numeroso – os progresso têm sido  lentos e por vezes tem havido retrocessos no terreno. Particularmente em África, o rendimento per capita recuou em relação aos países industrializados e em alguns países declinou mesmo em termos absolutos.

Podemos, claro, e devemos, aliás, utilizar também outros indicadores, para além do rendimento per capita para melhor tentar avaliar o sentido do progresso. Por exemplo, se usarmos os chamados Indicadores de Desenvolvimento Humano (IDH) – que consideram outras variáveis como a educação, a esperança de vida etc -,  podemos obter uma imagem mais contrastada e comparar, por um lado, o “fosso de rendimentos” e, por outro, o “fosso IDH”, os quais nem sempre são coincidentes.

Deve, no entanto, sublinhar-se que mesmo se numa perspectiva a longo prazo o “fosso IDH” diminuiu, há ainda muitos milhões de pessoas a perder terreno. Pode ter aumentado a esperança de vida (o que nem sempre acontece, designadamente em África por causa da SIDA), mas a qualidade de vida não melhorou, a pobreza absoluta persiste, há 19% da população mundial a viver na pobreza absoluta, com menos de 1 dólar por dia.

Ora, o drama é que há um círculo infernal da pobreza e das doenças, de que o HIV-SIDA e a TB constituem exemplos paradigmáticos. Nos países em desenvolvimento, as doenças como a TB têm um efeito sócio-económico devastador, minando a sustentabilidade do desenvolvimento a longo prazo. Ora, não será menos dispendioso quebrar este círculo vicioso do que alimentá-lo com mais mortes, mais pessoas doentes e mais pobreza ? Ignorar os problemas não será tornar a sua solução futura ainda mais dispendiosa e improvável ?

Foi nesta perspectiva que os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODMs) passaram a fazer parte da agenda mundial, com o compromisso, por parte de todos membros das Nações Unidas de os realizar até 2015.

Os oito ODMs identificados – designadamente, a erradicação da pobreza extrema e da fome, o acesso universal à educação, a melhoria da saúde infantil e materna, o combate às pandemias (Sida, Tuberculose e outras doenças), o acesso a água potável e saneamento básico, a protecção do ambiente –  permitem traduzir os direitos humanos básicos  e os ideais da ONU em realizações concretas que vão ao encontro das necessidades em especial dos mais pobres e dos mais vulneráveis. Alcançá-los é não apenas uma obrigação moral, mas também um imperativo político para garantir um futuro mais justo e seguro para toda a humanidade.

Neste combate, importa salientar a situação tristemente paradigmática do continente africano, que concentra todos os piores indicadores do desenvolvimento humano e em relação ao qual é urgente a Comunidade Internacional assumir as suas responsabilidades, empenhando-se na conclusão de uma verdadeira parceria de desenvolvimento para África.

Se pensarmos que, com apenas 11 % da população mundial, África conta com 24% do fardo mundial das doenças e apenas 3% dos recursos humanos mundiais na área da saúde, facilmente se compreenderá que a saúde pública em África tem de estar no topo da agenda mundial. E se a ajuda internacional ao desenvolvimento não pode por si só resolver todos os problemas de saúde pública nem dispensa uma agenda interna e planos de acção nacionais, sem ela nenhum poderá não entanto encontrar solução durável quer por se tratar de problemas transversais, quer por a sua dimensão revestir um carácter global.

Por todas estas razões, na minha qualidade de Enviado Especial, iniciei agora uma ronda de contactos junto das principais instâncias multilaterais. Nas últimas semanas, mantive já vários encontros, por exemplo, com o novo Secretário-Geral das Nações Unidas, Sr. Ban Ki-Moon, com a Presidência do G8, da União Europeia, com a recém eleita Directora-Geral da Organização Mundial de Saúde, Sr.ª Margareth Chan, com o Banco Mundial e as principais Agências das NU, sediadas em Genebra – O Alto Comissariado para os Refugiados, a Organização Internacional do Trabalho, a Agência Internacional para as Migrações -, para além dos contactos que estabeleci em Washington com as autoridades americanas. Em todos estes contactos insisti particularmente em três pontos.

Primeiro, na necessidade de aumentar a coordenação na luta contra a SIDA e a TB, dada que ambas as epidemias estão associadas; neste sentido, propus a realização de uma reunião de alto nível entre os principais interlocutores mundiais – doadores, reguladores, ONGs, Fundações e representantes dos Governos nacionais e comunidades locais – por forma a tornar mais eficazes os esforços de luta contra a co-infecção. Segundo, na necessidade de reforçar os meios de prevenção e de tratamento da tuberculose multiresistente (MDR-TB), derivada do uso inapropriado de antibióticos, e da tuberculose extremamente resistente (XDR-TB), especialmente crítica nas áreas de grande prevalência de HIV-SIDA, que fez disparar o número de vítimas mortais. Em terceiro lugar, insisti na necessidade de ser lançada uma iniciativa global para África no sentido de reforçar os sistemas de saúde, especialmente em África – infra-estruturas e laboratórios – e de atacar a grave crise de recursos humanos, como condição de base de sucesso do tratamento das várias epidemias e de realização da Metas de Desenvolvimento do Milénio.

Na defesa dos bens públicos globais, como a saúde, o ambiente ou a segurança, é decisivo actuar junto das instâncias que, à escala mundial, devem e podem contribuir para a governabilidade mundial. A regulação da globalização joga-se a esse nível, mesmo se depois a aplicação de medidas e programas concretos não dispensa o concurso dos Governos nacionais, a iniciativa privada e a adesão das comunidades locais. O caminho é claro e até lá não há tempo a perder porque as emergências não esperam.

 

*

Neste dia da Faculdade de Medicina, gostaria de terminar com uma sugestão. No passado verão, em Adis Abeba, um responsável pela saúde de um país africano de língua portuguesa dizia-me: “sabe um dos nossos principais problemas é a carência de trabalhadores da saúde, não necessariamente apenas médicos ou enfermeiros, mas prestadores de cuidados primários ao nível das comunidades. Faltam-nos pessoal e formação. Sabe, têm vocês mais médicos no hospital de Santa Maria do que nós em todos o nosso – extenso, acrescento eu  – território….”.

Pois esta interpelação deu-me uma ideia que gostaria de deixar à vossa consideração: por que não organizar, no verão, cursos de campo, de formação na área da saúde em países de língua portuguesa, contando com a colaboração maciça dos alunos dos últimos anos de medicina? Por que não recorrer também ao apoio de alguma Fundação, de bancos, de empresas que operem nesses países, bem como naturalmente ao apoio institucional da Universidade? Esta espécie de serviço cívico comunitário seria uma forma de reforçar a responsabilidade social dos nossos futuros médicos e o seu sentido de cidadania global, uma maneira de pagarmos um tributo de solidariedade para com o mundo em desenvolvimento! Aqui está uma sugestão que deixo à Faculdade e associações de estudantes para que a possam explorar, em jeito de homenagem ao vosso Dia da Faculdade.

 

Muito obrigado a todos.