detalhe de foto de José António Barão Querido, alçada da tapada

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30 anos de Poder Local

March 8, 2007
Universidade do Minho
Centro de Estudos Jurídicos do Minho
Braga, 8 de Março de 2007
«CICLO DE CONFERÊNCIAS COMEMORATIVO DOS 30 ANOS DE PODER LOCAL»

Sessão de encerramento

Discurso de Jorge Sampaio

 

Senhor Presidente do CEJUR, Professor Cândido de Oliveira

Senhores Conferencistas

Minhas Senhoras e meus Senhores

 

Penalizando-me por não ter podido estar presente no Ciclo de Conferências comemorativo dos 30 anos de poder local, que teve lugar em Dezembro último, foi com todo o prazer que prontamente aceitei participar nesta sessão de lançamento da obra que contém os textos das referidas intervenções.

Não só porque ao longo dos mais de 30 anos que levo de vida ao serviço da causa pública, sempre considerei o poder local, a diversos títulos e em distintas situações, indissociável do exercício democrático; mas também porque entendo que o poder local é um factor de estabilidade do regime político e de alavancagem do desenvolvimento do país.

Não querendo, naturalmente, repetir-me, procurarei apenas nesta breve intervenção que farei, sublinhar alguns desafios que o poder local deverá afrontar no futuro, que me parecem merecer destaque, de que seleccionarei três:

 

– Pensar global, agir localmente – reforçar o princípio da subsidiariedade

– Amanhã começa hoje – apostar no desenvolvimento sustentável

– Aprofundar a democracia através do reforço da cidadania

*

Pensar global, agir localmente

Em tempo de globalização, marcado por uma crescente interdependência das economias e das relações políticas, sociais e culturais entre os povos, a questão do Estado é um dos temas centrais das democracias europeias.

O Estado liberal e republicano, de que o nosso é directamente herdeiro, é um modelo estatal que exprime uma concepção unitária da nação, construída por afirmação contra a prevalência de um sistema de privilégios, contra a desigualdade perante a lei, contra os poderes periféricos e a insuficiência de representação nacional.

Mas consolidado o Estado moderno na suas funções garantísticas da igualdade perante a lei, das liberdades fundamentais e da solidariedade nacional, a tendência das últimas décadas, na Europa, tem sido descentralizadora.

Foi o 25 de Abril que permitiu a Portugal integrar este movimento de descentralização pois, como é sabido, o poder local é, antes de mais, um resultado feliz da Democracia.

Acredito que o reforço e o aprofundamento da via descentralizadora fará mais pela harmonização e pela solidariedade do que o centralismo. Tenho afirmado a convicção de que um sistema administrativamente descentralizado é um sistema politicamente mais justo e administrativamente mais eficaz.

Mas na ânsia de dar justa e justificada resposta à necessidade de descentralização administrativa, e como tal proceder à reforma das funções do Estado, é ainda importante não perder de vista que muitas das suas características são essenciais e continuam válidas, não devendo, por consequência, ser postas em causa.

Na verdade, se a desconcentração e a descentralização me parecem necessárias, por razões que me dispenso de referir, por sobejamente debatidas, igualmente me parece necessário garantir o exercício de um Estado forte, capaz de assegurar a coesão nacional e de definir as grandes prioridades de desenvolvimento do país. Este é o equilíbrio por onde passará uma das vertentes da reforma da Estado moderno.

 

Qualquer um dos extremos, centralização excessiva ou descentralização desnecessária, me parecem inconvenientes para o país. Gradualismo e concertação parecem ser a chave para uma reforma equilibrada dos poderes.

Importa, por outro lado, que as populações se revejam na progressiva evolução do modelo, que o consolidem, garantindo a sua constante e necessária participação democrática. É aconselhável, portanto, que todas as reformas mantenham sistemas de representação que consolidem e se possível ampliem os actuais mecanismos de integração dos cidadãos no processo democrático.

Na realidade, o nosso tempo é marcado por uma crescente exigência de proximidade dos cidadãos em relação àqueles a quem confiaram, pela eleição, a responsabilidade de resolver os problemas do seu bem‑estar e qualidade de vida. É o tempo de uma nova ambição de participação das populações nas decisões que mais directamente as afectam, no quadro democrático. É também, por isso mesmo, um tempo em que se reclama aos poderes públicos que se organizem efectivamente, aos diversos níveis, de acordo com o princípio da subsidiariedade, entendido no sentido de que, “o exercício das responsabilidades públicas deve incumbir, de preferência, às autoridades mais próximas dos cidadãos”, tendo em conta a natureza das tarefas a desempenhar e as exigências de eficácia e economia, conforme prescreve a Carta Europeia da Autonomia Local.

Aliás, a meu ver, o princípio da subsidiariedade aplica-se não só ao escalão da governação nacional e local, mas também no plano mundial e, com maioria de razão, europeu. A consideração dos vários escalões de governação tornou-se um imperativo, por força quer da globalização quer dos movimentos de integração regional, como é o caso paradigmático da União Europeia, a que pertencemos.

As experiências de desenvolvimento centradas no local estarão condenadas a morrer, se não estiverem articuladas entre si e com as políticas de âmbito nacional, se não se inscreverem numa matriz integradora de nível regional, se não levarem em devida consideração a dinâmica criada pela integração europeia.

Mesmo para agir localmente, importa pensar sempre globalmente porque é cada vez maior o número de problemas que, embora possam requerer soluções locais, revestem uma dimensão transversal com carácter nacional, regional, ou até, global.

Por isso, adquire essencial importância o princípio da subsidiariedade para assegurar, em cada circunstância, não só o nível mais apropriado de decisão, mas também o seu enquadramento num contexto de imparável globalização e de internacionalização. Nenhuma sociedade, nem comunidade, se pode alhear do meio exterior em que evolui. Esta é a complexidade intrínseca do nosso tempo.

É neste contexto que as administrações locais se confrontam hoje com um número crescente de responsabilidades, sob a pressão criada por um vasto conjunto de novas áreas em que são constantemente chamadas a intervir e em relação às quais nem sempre dispõem dos instrumentos e meios adequados para assegurar uma adequada actuação.

Os governos procuram novas opções, reformulando funções e competências, trilhando o estreito caminho entre o desenvolvimento de novos limiares de subsidiariedades – quer em relação às instâncias comunitárias quer em relação às administrações locais ou regionais –  e o debate, aliás tenso, sobre o desinvestimento do Estado em funções – sobretudo sociais – que  lhe estavam confiadas.

Em suma, direi que estamos perante uma encruzilhada em que se tratará de definir novos e dinâmicos equilíbrios entre os vários escalões de governação, na certeza de que, por um lado, é ao nível do poder local que os cidadãos mais serão tentados a ser exigentes e a reclamar responsabilidades e de que, por outro, é também a este nível que serão mais visíveis os efeitos – positivos e negativos – da articulação e do jogo de forças entre o nível supranacional e nacional.

 

O amanhã começa hoje: o desenvolvimento sustentável

 

Como exemplos de novas áreas de intervenção em que se espera que os municípios exerçam uma política activa, referiria o da valorização do património natural e construído, na dupla perspectiva, por um lado, do desenvolvimento sustentável e, por outro, de defesa da memória colectiva e de poupança de recursos escassos. Ou seja, não se trata apenas de recuperar patrimónios no sentido de uma cultura de excepção, mas de os requalificar em função das pessoas, dos seus laços com os sítios, das suas memórias, da sua identificação enquanto membros de uma comunidade. Cuidar da herança das paisagens, das pedras e das pessoas, deve ter prioridade sobre o começar tudo de novo à custa de recursos não renováveis, de novas infra-estruturas e novas edificações, e, sobretudo, de novas raízes, que as pessoas por vezes penosamente terão que forjar.

Por outra parte, é absolutamente necessário que as populações e os agentes económicos incorporem nos seus interesses a noção de desenvolvimento sustentável e apreciem soluções duráveis, ainda que menos espectaculares, e criadoras de sinergias entre centro e periferia, entre público e privado.

É preciso cuidar do ordenamento do território e da humanização dos espaços habitados, designadamente urbanos. Este é um desafio de civilização, pois desse ordenamento dependem a qualidade de vida das pessoas e as próprias condições de afirmação da cidadania.

Fenómenos como o estrangulamento das acessibilidades, o envelhecimento dos núcleos históricos, a exclusão social e a marginalidade impõem aos responsáveis autárquicos a definição de políticas orientadoras globalmente fundamentadas, susceptíveis de contrariar a tendência para a degradação da vida nas periferias das grandes cidades.

Mas os instrumentos renovadores da vida urbana são igualmente indispensáveis para a afirmação dos núcleos de menor dimensão, que travam uma luta de quase sobrevivência contra a desertificação e a litoralização.

A fixação e atracção de populações nestas zonas, fundamental para o equilíbrio do conjunto do espaço geográfico e humano nacional, impõe uma extensa qualificação dos recursos à disposição dos concelhos com mais pequenos núcleos urbanos.

A atenção aos recursos humanos é pois um dos temas que não pode deixar de ocupar lugar cada vez mais central na agenda política dos autarcas. Refiro-me à sempre mais premente e necessária intervenção social do poder local. O desemprego, a pobreza e a exclusão ocorrem na generalidade do território e não são problemas apenas das grandes metrópoles. Mas penso também nos domínios da educação e da formação, nos quais aliás se suscitam múltiplos planos de complementaridade entre a administração local e a administração do Estado.

Nunca me cansarei de repetir que o desafio da educação e da formação é absolutamente crucial para o desenvolvimento do nosso país. É necessário levar a sério a ideia de que os estabelecimentos de ensino e de formação são parte fundamental dos serviços públicos de bem-estar e, portanto, devem ser apoiados por todos os outros elos da rede de protecção social dos cidadãos. As autarquias podem desempenhar um papel importante na articulação entre o sistema regular de ensino, o subsistema de formação profissional e a rede empresarial, enquanto motores últimos da inovação. Só assim será possível aproveitar melhor as qualificações existentes e apostar na requalificação da sua mão-de-obra, reforçar a capacidade produtiva e concorrencial.

Em todas estas questões, importa ter presente a problemática do desenvolvimento, dos seus modelos, da sua sustentabilidade e, deste modo, da sua responsabilidade social, intra e inter-geracional.

Quando me refiro a desenvolvimento sustentável quero significar uma visão ampla e solidária do Portugal moderno. Uma solidariedade que tem numa concepção alargada de território a sua base de apoio.

Ou seja, pretende-se uma consideração do território que olhe de frente para os problemas da agricultura e das florestas, que reconheça a necessidade de estudar e proteger a diversidade biológica, conservar a fauna e a flora, os rios e mares bem como a variedade das nossas paisagens.

A solidariedade, que não é dissociável do ambiente e do desenvolvimento sustentável, implica também um adequado ordenamento do território, abrindo caminho para uma boa distribuição das actividades económicas, das vilas e cidades, que nos permita o correcto uso dos recursos naturais, do solo, da água, do ar, numa perspectiva de equidade social e regional, sem esquecer o nosso dever de deixar às gerações futuras um país de que também se possam orgulhar.

Mas, para isso, é preciso mudar velhos hábitos e vencer preconceitos. É preciso pensar no longo prazo. É preciso reconhecer o papel da ciência e do conhecimento. É indispensável repensar a coordenação das políticas públicas. É preciso desenvolver uma cultura cívica do diálogo e da cooperação, vencendo a nossa tradicional propensão para a quezília mesquinha e paralisante.

Nos últimos anos, a ideia de sustentabilidade do desenvolvimento tem penetrado praticamente todos os sectores da vida pública e faz parte das agendas dos órgãos políticos, das empresas e das organizações não-governamentais. A consolidação desta orientação passa por uma prática sempre mais exigente, em que o contributo do poder local não é de forma alguma dispensável. Por isso, é necessário que as autarquias disponham, para poderem responder eficazmente a estes cruciais desafios, de instrumentos jurídicos, técnicos e financeiros adequados. 

Mas é óbvio que os órgãos eleitos locais não podem ficar indiferentes ou à margem dos grandes desafios civilizacionais com que estamos confrontados. O desenvolvimento não se resume à componente do crescimento, tem que ser visto numa perspectiva pluridimensional, de desenvolvimento sustentável.

 

Aperfeiçoar a democracia através do reforço do poder local

Como tenho frisado frequentemente, o poder local, apelando à participação das populações e exercendo funções em grande proximidade com as pessoas, tem sido uma autêntica escola de cidadania que acumulou um capital de confiança da maior importância para a democracia portuguesa.

Os eleitos locais são porta-voz e mediadores dos interesses das comunidades. Eles dão corpo a uma das formas de representação política em que a dimensão de responsabilização directa e de resposta imediata às expectativas das populações são, porventura, mais exigentes.

O balanço de 30 anos de poder local permite, no meu entender, destacar o contributo positivo e sólido dado ao combate a tantas dificuldades nacionais que o centralismo do Estado não estava em condições de travar. Não quero, com isto, dizer que foram resolvidos de forma satisfatória todos os problemas, longe disso.

Mas, a confiança dos cidadãos no poder local, construída ao longo de anos, é um dos factores de estabilidade do regime político. A manutenção dessa confiança na evolução da repartição de competências administrativas é por isso essencial.

Apesar do catastrofismo de algumas análises e atitudes perante o poder local, multiplicam-se os sinais de que os cidadãos se sentem melhor representados por aqueles que lhes estão mais próximos, que estão mais disponíveis para os ouvir e para procurar respostas para as suas necessidades. Eu direi mesmo que as pessoas sentem que essa relação de maior proximidade com os eleitos torna mais eficaz a sua crítica a aspectos concretos da actuação política local.

Esta percepção representa um capital de confiança essencial para a democracia, que deve ser aprofundado e não descredibilizado. Por isso, por um lado, parece-me injusto e despropositado o lançamento de suspeições generalizadas sobre os autarcas, que inquestionavelmente desempenham as mais relevantes funções políticas num quadro de serviço público particularmente exigente e de, por vezes, bem desconfortável visibilidade. Mas, por outro, reconheço certamente que é necessário criar condições para uma intensificação da confiança dos cidadãos no poder autárquico. Para tal, importa combater por todos os meios comportamentos duvidosos, como a especulação de terrenos e imobiliária, o urbanismo desenfreado e todas as formas de corrupção que, como sabemos, têm contribuído para desbaratar o capital de confiança nas autarquias.

Mostrei-me favorável, num tempo em que tal não se tinha ainda tornado corrente, a uma reponderação do modelo de organização do poder local, no sentido de adoptar formas mais directas de avaliação e de fiscalização do seu exercício. A expectativa das populações relativamente às suas autarquias e aos seus autarcas é muito elevada. Mérito sem dúvida do sistema de autonomia local e dos seus protagonistas. Este reconhecimento é exigente. Afinal os cidadãos sabem que a sua qualidade de vida depende em múltiplos aspectos da actuação do poder local.

A vida política democrática joga-se na articulação entre as instituições e as preocupações e ansiedades do quotidiano. O poder autárquico é actor fundamental, não um espectador ou um mero beneficiário, deste processo de revigoramento democrático, através da aproximação entre o Estado e os cidadãos.

Não creio enganar-me se disser que Portugal não pode dispensar o exercício de um Estado forte como factor de coesão nacional. Mas, parece-me também que necessita do reforço do poder local, como irrecusável factor de desenvolvimento e de aprofundamento da Democracia.

Muito obrigado a todos.