detalhe de foto de José António Barão Querido, alçada da tapada

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A Integração Europeia de Portugal, 20 anos depois

July 26, 2006
Palestra General Câmara Pina 
“A Integração Europeia de Portugal, 20 anos depois”,
Dr. Jorge Sampaio
Instituto de Defesa Nacional – 26 de Julho de 2006

 

Senhor Director do Instituto da Defesa Nacional

Excelências

Minhas Senhoras e Meus Senhores

 

 

 

As minhas primeiras palavras são de agradecimento ao Instituto de Defesa Nacional, na pessoa do seu Director, Professor João Marques de Almeida, pelo amável convite que me endereçou para fazer a Palestra General Câmara Pina.

Aceitei-o, não só em homenagem ao ilustre fundador desta instituição, pioneira para o tempo em que foi criada, mas também pelo interessante tema que me propuseram abordar aqui hoje.

Acresce que esta é outrossim uma feliz ocasião para selar as novas relações de vizinhança que mantemos, desde que passei a ter o meu gabinete de trabalho aqui, na tapada, atrás do IDN, na chamada Casa do Regalo…!

 

*

 

Conhecem certamente o meu interesse pela Europa e, bem entendido, o quanto as questões europeias estiveram no âmago das minhas prioridades nos meus dois mandatos como Presidente da República.

Do meu ponto de vista, revisitar as duas décadas de integração europeia de Portugal vale a pena, não tanto pelo balanço que se possa fazer, mas, sobretudo, pela avaliação que permite efectuar do ponto em que estamos do nosso caminho e pela luz que projecta sobre o futuro.

De facto, como em 1986, quando aderimos às comunidades europeias ou, melhor ainda, em 1977, quando apresentámos o pedido formal de adesão, é para o futuro que devemos voltar os olhos, reconhecendo os erros cometidos para não os reproduzir e tirando proveito das oportunidades irrepetíveis de que o presente é portador.

Proponho-vos uma reflexão sobre o que temos a fazer. Centrar-me-ei em alguns grandes objectivos e nas responsabilidades que, se não queremos ficar para trás, devemos assumir sem mais demoras.

Para onde queremos ir? Como lá chegar? O que podemos e devemos fazer pela Europa e por Portugal? Que futuro escolhemos de entre os futuros possíveis não só no plano nacional, mas também europeu?

São, no fundo, estas as questões que quero evocar aqui.

Desenvolverei as minhas observações em três tempos:

 

       Debruçar-me-ei, primeiro, sobre os vinte anos de mudanças em Portugal;

 

       Abordarei, em seguida, o tempo europeu durante essas duas décadas, sublinhando a encruzilhada em que se encontra o projecto europeu actualmente;

 

       Por fim, regressarei a Portugal para evocar os desafios que, no presente, o quadro europeu nos coloca.

 

*

 


Primeiro tempo – chamar-lhe-ei:

 

1. Portugal, vinte anos depois

 

Como é bem sabido, a opção europeia fez parte das decisões estruturantes do regime democrático saído do 25 de Abril pois configurou a resposta estratégica de Portugal à alteração do seu posicionamento internacional na sequência da descolonização.

Com tal decisão, Portugal operou uma mudança profunda de prioridades na sua política externa, unindo o seu destino ao da Europa, sem por isso ter virado as costas ao Atlântico. Mas a opção europeia teve também profundas implicações internas, com a adopção de um novo paradigma político, económico e social para o país.

Depois da Revolução, a perspectiva da adesão, a partir de 1977, deu um rumo político claro a Portugal, imprimiu um ritmo de mudança e forçou um extenso programa de reformas. Pudemos assim consolidar a transição democrática, reforçar o Estado de Direito, desenvolver a economia de mercado e o modelo de justiça social.

Nos vinte anos que levamos de integração europeia, como caracterizar as profundas transformações que Portugal realizou no plano político, económico, social e até demográfico?

Em todos estes planos, destacarei alguns pontos de relevância:

Antes de mais, no plano político. O objectivo da adesão enquadrou e impulsionou o processo de democratização, iniciado em 1974, que não se esgotou no acto constituinte e na consagração de um quadro constitucional formal. Implicou, ao invés, vastas mudanças, que passaram pela consolidação do regime pluripartidário, pela instauração da confiança no edifício da democracia representativa, pelo desenvolvimento do exercício de participação cívica na vida pública, pelo funcionamento quotidiano do Estado de direito democrático, pelo reforço da separação de poderes e pela protecção dos direitos civis, políticos e também sociais.

A trajectória efectuada no arco destas duas décadas faz, aliás, com que hoje, Portugal esteja em fase com os restantes países europeus e se defronte exactamente com o mesmo tipo de desafios e de dificuldades na preservação, promoção e aperfeiçoamento das democracias quer representativa quer participativa.

Gostaria agora de referir brevemente uma outra área, em que a evolução registada foi igualmente profunda e convergente com a dos parceiros europeus: a da demografia.

Não é exagerado dizer que se verificou, em Portugal, uma verdadeira mutação de regime demográfico. As taxas de fertilidade que eram, em termos comparativos, anormalmente elevadas, caíram nos últimos anos para valores próximos da média europeia. No mesmo sentido, a esperança média de vida aumentou e as taxas de envelhecimento revelam hoje valores preocupantes, nomeadamente para a sustentação dos sistemas de segurança social, idênticos aos das sociedades envelhecidas do centro europeu.

Convém aqui abordar um outro ponto, o da evolução dos nossos padrões migratórios. Com a descolonização, Portugal recebeu e re-integrou, em muito pouco tempo, mais de meio milhão de deslocados dos antigos territórios coloniais. Mas a situação mais surpreendente havia de ser, sem dúvida, o da transformação do país em destino de imigrantes, oriundos, numa primeira fase, das antigas colónias africanas e, depois, da Europa de Leste e do Brasil.

No mesmo período, as mudanças na economia são igualmente vastas e profundas, como se pode concluir da análise dos números sobre o crescimento económico antes e depois da adesão.

Antes da adesão o PIB per capita português era cerca de 52% (em paridade de poder compra) da média comunitária. Em 1995 atingiu 68% e em 2000 ultrapassou os 73%. Já em 2005, mercê do menor crescimento da economia portuguesa, o nosso PIB per capita baixou para cerca de 66% da média dos Quinze.

No entanto, os trinta anos de democracia e os vinte de integração europeia e de fundos estruturais e de coesão, não permitiram ultrapassar ainda as assimetrias de desenvolvimento que caracterizam o território nacional. Neste aspecto, a dicotomia litoral/interior, com forte polarização demográfica nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, permanece como um importante dualismo do modelo de desenvolvimento português. Há, contudo, uma mudança importante, com a consolidação de pólos urbanos de média dimensão, um sinal positivo embora insuficiente para conseguir contrariar a tendência de desvitalização do interior.

Uma outra área em que se registaram profundas transformações foi a das estruturas económicas e produtivas. Em 1970, o emprego no sector primário representava mais de um terço do total, e caiu, em 2002, para cerca de 12%, ou bastante menos se usarmos os critérios do Censo. O emprego industrial já está, hoje, em declínio, enquanto o emprego terciário, ainda inferior em proporção e níveis de qualificação à média europeia, se tornou a parcela mais importante na distribuição do emprego (54%).

Já num outro plano, o da qualificação pessoal, o alargamento da escolaridade básica e o forte acréscimo registado no acesso ao ensino superior são, sem dúvida, os mais importantes progressos registados.

No entanto, estamos longe de ter resolvido todos os problemas nesta área. O mais premente – que nos obriga a continuar a considerar a escolarização de qualidade para todos como uma verdadeira prioridade nacional – prende-se com os níveis de insucesso e de saída precoce da escola que carecem ser urgentemente corrigidos.

Em consequência deste conjunto de mutações, a sociedade portuguesa transformou-se, nas últimas décadas. Tornou-se uma sociedade mais urbana, com um melhor nível de educação e mais velha, assente numa classe média em expansão, como é típico dos processos europeus de modernização, mas que também se defronta hoje com inúmeros problemas de transição.

Esta impressão positiva sobre o modo como Portugal – com ajudas comunitárias de vulto, é justo frisá-lo – conseguiu enfrentar as dificuldades do processo de modernização é, aliás, corroborada através da observação do comportamento do Índice de Desenvolvimento Humano. No último quarto do século XX, Portugal foi aquele que mais convergiu em relação aos valores médios da União Europeia.

A avaliação globalmente positiva, que faço, da evolução da nossa economia e sociedade revela bem, a meu ver, a capacidade portuguesa para enfrentar pesados desafios e deve, pois, servir de estímulo. Mas não deve, todavia, fazer esquecer as dificuldades sentidas nos últimos anos nem escamotear o esforço necessário para as superar. Voltaremos mais adiante a este ponto.

Chego assim ao segundo tempo, que designo por:

 

2. Europa, vinte anos depois

 

Como lembrava recentemente Felipe Gonzalez, no Mosteiro de Yuste, aquando da atribuição do Prémio Carlos V a Helmut Kohl, os dez primeiros anos da integração europeia de Portugal e de Espanha coincidiram com um dos períodos mais dinâmicos de toda a história da construção europeia. Por isso, Gonzalez caracterizou expressivamente esta década como a da Europa galopante.

Década de sucessos europeus, de facto, caracterizada pelo alargamento a sul, a adopção do Acto Único e, mais tarde, do Tratado de Maastricht, bem como pela plena realização do Mercado Interno e da União Económica e Monetária, dois marcos chave do processo de integração europeia.

Por seu turno, a alteração profunda do contexto internacional, com a queda do muro de Berlim, a unificação alemã e o fim da guerra fria, em vez de dividir a Europa, veio consolidá-la porque a União Europeia soube responder com uma adequada estratégia a estes novos e inesperados desafios.

É justo lembrar que esta década de sucessos resultou, sobretudo, da visão e da determinação de um conjunto notável de dirigentes políticos europeus, entre os quais quero destacar Delors, Mitterrand e Kohl.

Inspirando-me na metáfora da Europa galopante, poderia dizer que se lhe seguiu a fase da posta-restante, a qual corresponde sensivelmente à nossa segunda década de integração europeia.

Embora em 2004 a União Europeia tenha dobrado o cabo do alargamento a leste, que representou um marco histórico no mapa da reunificação do continente e um tempo forte da construção europeia, os resultados destes anos de transição de século não têm respondido às altas expectativas depositadas no projecto europeu, num contexto internacional sempre mais volátil e preocupante, que tem vindo a colocar a Europa perante um número crescente de ameaças e desafios.

Na verdade, perante novas incertezas e inseguranças, por carência de visão e de estratégia, por ausência de vontade política e porventura – há quem o refira – por falta de uma liderança forte, a União Europeia ainda não conseguiu abrir caminho para um novo patamar de integração, única via, a meu ver, de compensar, por um lado, as ondas de choque do recente alargamento e, por outro, de se dotar de instrumentos – na acepção muito genérica de quadro jurídico, político e institucional – que lhe permitam responder com políticas adequadas e eficazes aos múltiplos problemas com que se confronta.

Entre o cisma iraquiano, que causou inúmeras e duradouras sequelas, e a recusa, no ano passado, do Tratado Constitucional em França e nos Países Baixos com as conhecidas e actuais repercussões, parece existir uma inquietante linha de continuidade, corroborada por uma extensa sequência de dificuldades que se vêm avolumando. Penso, por exemplo, no plano da segurança, no do emprego e no da economia. Mas penso, também, na questão das fronteiras da Europa, do diálogo de culturas e civilizações, da imigração ou da própria identidade europeia.

Neste conspecto do tempo europeu, 2005 assemelha-se, de facto, a um ano de ressaca para a Europa. Ressaca porque a digestão do êxito do alargamento não se revelou fácil e não surtiu os efeitos esperados. Ressaca também por causa do impasse constitucional europeu.

A ressaca, que dominou 2005, tem-se prolongado pelo ano em curso. Mas adquiriu agora contornos de uma crise funda, resultante não só da real acumulação das dificuldades internas, mas também do cruzamento de inúmeros factores de perturbação externa.

A meu ver, estamos perante uma verdadeira crise de confiança no projecto europeu, que é grave e insidiosa. Grave porque a confiança é o cimento do pacto europeu, como aliás de qualquer contracto político. Crise insidiosa também porque tem levado, com cada vez mais frequência, a pôr em causa a bondade do projecto europeu e as suas realizações emblemáticas, de que são exemplos, o mercado único, o euro, a livre circulação de pessoas ou o próprio alargamento. De facto, no inconsciente colectivo dos europeus, por um lado, o ónus de todas as presentes dificuldades recai indistintamente sobre “Bruxelas”, e, por outro, a “Europa” parece canalizar todos os receios, ameaças e incertezas de que os cidadãos se sentem rodeados.

Acabamos de encetar o segundo semestre de 2006, sem grandes perspectivas de desanuviamento da situação. Por um lado, mantém-se o impasse constitucional, ocultado na prorrogação de um período de reflexão que, até à data, não produziu frutos tangíveis. Tudo estará, sem dúvida, em se conseguir encontrar uma fórmula que permita responder às preocupações manifestadas pelos eleitores franceses e neerlandeses, sem prejuízo da vontade expressa pelos povos cujos Estados já ratificaram o Tratado, até porque aqui, está em causa o princípio da igualdade entre os Estados. Ora, encontrar uma fórmula que concilie estas duas exigências, em larga medida contraditórias, não será tarefa nem de rápida nem de fácil execução.

Por outro lado, persiste a dificuldade central em encontrar respostas adequadas para os incessantes desafios da globalização, embora a Comissão venha fazendo esforços crescentes no sentido de relançar algumas políticas europeias e de assim reforçar as solidariedades de facto entre os parceiros europeus em torno do projecto europeu.

Acresce ainda que o recente agravamento da situação internacional, com o conflito armado no Médio Oriente, na realidade prática, a guerra civil no Iraque, o aumento da instabilidade no Afeganistão, as incógnitas quanto à questão nuclear iraniana, a emergência da nova problemática da segurança energética e a latência de um afrontamento entre o Islão e o Ocidente, aliás no próprio seio das sociedades europeias, reforça não só o clima de incerteza que pesa sobre o nosso futuro como suscita renovadas e pertinentes dúvidas sobre o papel da União Europeia na cena internacional.

Concretamente no caso do actual conflito no Líbano e na Palestina, a Europa ganhará tudo em evitar um novo cisma. A experiência mostra bem que só uma solução política poderá trazer segurança, estabilidade e desenvolvimento para o Médio Oriente e que, ao invés, a força e a violência têm sido factores de radicalização das populações afectadas e de potenciação do extremismo.

A actual situação é extremamente complexa uma vez que estamos, no fundo, perante uma recomposição, aos mais diversos níveis, dos poderes e das relações de força nesta região já martirizada.

Deste prisma de leitura, o potencial de generalização do conflito é elevado. Por isso, entendo que a melhor opção seria a de uma rápida mediação internacional, impulsionada também – e com determinação – pela UE, com o indispensável apoio dos EUA no sentido de, por um lado, garantir a segurança de Israel e impedir novas escaladas, e, por outro, reforçar o Estado libanês por forma a conter os extremismos. Parece-me também que chegou a altura de a comunidade internacional lançar uma nova iniciativa que leve Israel e a Autoridade Palestiniana a retomar um plano de paz, com base no princípio da co-existência de dois Estados.

Para tudo isto são necessários, directa ou indirectamente, todos os interlocutores, mesmo os que porventura mais detestamos. A paz é trabalho de procura incessante e determinada e ninguém, com capacidade de a perverter, pode ficar de fora.

Quanto ao papel da União Europeia nesta região, como aliás em outros teatros de crise, considero que é tempo de deixar de ser um mero cash-dispenser humanitário para passar a assumir responsabilidades éticas, políticas e mesmo militares na resolução das situações de conflito. Mais ainda, seria, do meu ponto de vista, desejável que, na actual crise no Líbano, a União Europeia se disponibilizasse a liderar uma força de interposição, vocacionada para executar as missões necessárias para restabelecer a paz na região. Esta seria porventura uma oportunidade de credibilizar a Política Europeia de Segurança e Defesa, contribuindo para reforçar o papel da União Europeia no mundo, o que, de resto, os cidadãos europeus têm reclamado.

A este respeito, gostaria de saudar a iniciativa do nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros que, muito oportunamente, solicitou à Presidência Finlandesa a convocação de uma reunião extraordinária com os seus homólogos da União Europeia.

 

Excelências

 

Na realidade, devemos reconhecer que é precisamente nas áreas em que os efeitos controversos da globalização mais se têm feito sentir – economia, emprego, segurança, imigração – que a Europa menos se tem revelado capaz de secundar a acção dos Estados na sua resolução.

Isto explica talvez o processo de suspeição e de revisionismo, de que a União Europeia está actualmente a ser objecto, através do qual estão a ser postos em causa os próprios fundamentos do projecto europeu – a finalidade prosseguida, o modelo de integração desenvolvido até agora e os meios utilizados. Mas, a meu ver, este é um perigoso movimento de recuo que urge combater, embora devamos, naturalmente, questionarmo-nos sobre a origem das presentes dificuldades.

Uma das questões que legitimamente se coloca é a de saber se a União Europeia, como força reguladora da globalização, tem desempenhado o seu papel de forma satisfatória ou se poderá ir mais longe. Ou seja, trata-se de saber se parte dos actuais problemas não derivará precisamente, por um lado, de um défice de intervenção comunitária no plano da governação económica da zona euro e no âmbito das políticas sociais e, por outro, de uma actuação pouco eficaz da União Europeia nos fora multilaterais, que lhe retira peso político como actor da globalização.

Um outro ponto, que merece reflexão, é o de saber se, enquanto força reguladora do mercado único europeu, a União Europeia não veio alterar profundamente a forma como se deve equacionar não só o chamado “interesse nacional”, mas também os equilíbrios bilaterais entre os parceiros – o que, no caso português, assume particular visibilidade nas trocas comerciais e no relacionamento económico com Espanha.

No meu entendimento, as dificuldades com que nos defrontamos, reflectem, pela sua dimensão estrutural, preocupantes sinais de vulnerabilidade do modelo de desenvolvimento comum à maioria dos parceiros da União Europeia. Ora, para estes problemas, que são de natureza global, não há, parece-me, soluções unilaterais nem espaço para atitudes isoladas.

Por isso, o primeiro passo neste processo consiste em recusar os impasses do proteccionismo, do retraimento internacional e do impulso libertário de desmantelamento do modelo social europeu.

Importa, depois, empenharmo-nos na procura das melhores estratégias para que a União Europeia, como um todo, possa sair da crise.

Não tenho, por mim, quaisquer dúvidas de que a solução dos actuais problemas só será possível com mais Europa. Quando digo mais Europa, penso numa União Europeia mais integrada politicamente, no sentido para que aponta o Tratado Constitucional europeu. Por isso entendo que, qualquer que seja a solução formal a encontrar, importa preservar o acervo do actual Tratado. Os avanços que contém permitirão dar um impulso político à União. Poder-se-ia naturalmente ter ido mais longe. No plano social ou ainda institucional. Por exemplo, pessoalmente continuo a pensar que a inclusão de um sistema bicameral seria benéfica para a salvaguarda do princípio da igualdade entre os Estados e para o bom funcionamento da União como Federação de Estados-Nação. Mas foi o acordo possível. Importa pois não desperdiçar as potencialidades que este Tratado encerra. Devemos evitar que o seu património seja liquidado, saldado ou posto em leilão, o que só prejudicará países de dimensão média, como Portugal. Há que lutar pela sua recuperação.

Só com mais Europa política poderemos evitar o declínio e a irrelevância para que algumas teses em voga nos pretendem remeter. A União Europeia é demasiado importante no sistema internacional para se entregar a uma lógica de fechamento depressivo ou a reacções emocionais face aos poderes que lhe disputam espaço de influência no mundo de hoje, representem eles hegemonias já instaladas, como a americana, ou potências emergentes como a China ou a Índia.

 

Excelências

 

Gostaria de terminar esta segunda parte da minha intervenção com uma nota de optimismo, voltando um pouco atrás, à crise política aberta pelos referendos negativos dos Países Baixos e em França. Para além do problema criado pela rejeição do Tratado Constitucional, que está por resolver, houve, a meu ver, algo de muito positivo nestas consultas pois a alta taxa de participação registada atesta que está em curso o processo de politização da União Europeia. Este facto reveste a maior importância pois revela que a Europa é enfim percepcionada como um “facto político”, susceptível de ser sancionado, positiva ou negativamente, pelos povos.

Neste sentido, estas consultas traduziram uma vitória da democracia participativa e a afirmação da Europa política e dos cidadãos. Este ponto é animador e corrobora o que já afirmei sobre a via a seguir: só reforçando a integração política poderemos ir ao encontro das expectativas dos cidadãos, fazer desaparecer os motivos dos seus receios e dar-lhes razões para confiarem no projecto europeu.

 


Finalmente, o terceiro tempo, a que chamo:

 

3. E agora?

 

Ao virar a página de duas décadas de integração europeia, devemo-nos interrogar – e agora? O que podemos esperar da Europa, o que podemos fazer por Portugal?

Os tempos têm sido difíceis. Instalou-se um certo negativismo. Onde antes havia certezas, hoje há interrogações e dúvidas. A confiança dos portugueses no projecto europeu entrou em declínio, segundo as indicações do Eurobarómetro. Deixámos de pertencer a alguns núcleos avançados da integração europeia – não ratificámos o Tratado Constitucional, não fazemos parte dos grupos pioneiros em matéria de Justiça e Assuntos Internos, até deixámos de ser apontados como os bons alunos da União Europeia.

Mas não nos devemos deixar abater. Há que reforçar a nossa vontade de agir com continuidade e persistência. Muito depende de nós. Somos capazes de fazer mais e melhor. O que temos de fazer?

A meu ver, estaremos a contribuir para o avanço da Europa, se, antes de mais, soubermos responder aos desafios internos que se colocam ao nosso país, os quais se inscrevem, de resto, na Europa que foi e é opção e projecto de futuro.

Este ponto é muito importante. Actualmente, o sucesso do projecto europeu está dependente da realização, pelos Estados membros, das reformas necessárias para assegurarem a sua própria viabilidade, num contexto de acentuado envelhecimento demográfico, da globalização imparável, de mudanças aceleradas dos equilíbrios internacionais e de mutação de paradigmas produtivo, económico, social e até cultural.

Apesar de ser no quadro europeu – e mormente no âmbito da Agenda de Lisboa – que Portugal tem de assumir uma ideia de futuro e uma estratégia de desenvolvimento a médio prazo, com objectivos claros e motivadores e instrumentos eficazes, a sua realização está nas nossas mãos, pertence à nossa agenda interna e ninguém a executará por nós. Esta é, parece-me, uma nova faceta da construção europeia, porventura mesmo um ponto de ruptura na sua história, o futuro o dirá.

A meu ver, são seis os principais desafios para a próxima década, se quisermos dar um impulso ao nosso desenvolvimento colectivo e reintegrar plenamente a rota europeia:

 

Primeiro desafio, o da Educação

 

Esta é, sem dúvida, a nossa questão central, a qual condiciona todas as outras. As elevadas taxas de abandono escolar têm de cair. É preciso investir melhor na educação, aumentar a qualidade e a exigência do ensino em Portugal e a nossa capacidade de afirmação no campo da ciência e do conhecimento. Esta não é uma questão conjuntural, que dependa de oportunidades circunstanciais e possibilidades orçamentais. É uma questão de fundo, é uma grande causa nacional e republicana e representa a maior reforma estrutural que teremos de efectuar.

 

Segundo desafio, o da Formação Profissional

 

Outro grave problema de fundo que Portugal tem de enfrentar é o da inadequação do sistema de formação profissional aos imperativos do mercado de trabalho e da nova economia. É preciso não esquecer que na nova economia o que conta não é a mão-de-obra barata, mas sim a qualificação dos recursos humanos, a sua cultura e formação técnica. É preciso uma cultura que valorize o trabalho, o aperfeiçoamento, a qualificação e a formação ao longo da vida e o domínio das novas tecnologias de informação e comunicação, como ressalta claramente da “Estratégia de Lisboa”. A sua aplicação é uma prioridade nacional.

 

Terceiro desafio, o da Inovação, Investigação e Desenvolvimento

 

É vital dinamizar as relações entre os componentes do sistema nacional de inovação, estimular e sensibilizar as empresas para a urgência de um investimento mais reprodutivo em Investigação e Desenvolvimento e tornar mais frequente e natural o recurso às relações entre a produção de saberes e o tecido económico. As empresas, motores últimos da inovação, e os centros de saber têm de simplificar e agilizar as relações entre si. Sem inovação, não reforçaremos a nossa capacidade de concorrer no mercado europeu nem conseguiremos ganhar a batalha da produtividade e da competitividade no mercado mundial.

 

Quarto desafio, o da Competitividade e do Crescimento da Economia

 

Como é bem sabido, temos um problema de fundo grave, que é o do défice estrutural de produtividade e de competitividade da economia portuguesa.

O desempenho da economia portuguesa, nos últimos anos, tem sido, temos de o admitir, decepcionante. Comparando os anos de 2000 com 2005, a taxa média de desemprego aumentou de 3,9% para 7,6%; a variação do produto passou de um crescimento de 3,4% para valores negativos em 2003; e o rendimento per capita, em paridades de poder de compra, relativamente à média da União Europeia, desceu de 73% para 66%.

No contexto da globalização, só uma estratégia de diferenciação qualitativa e de progressiva transição para a produção de bens e serviços com mais valor acrescentado poderá constituir uma solução duradoura para modernizar a estrutura produtiva da economia portuguesa. A competitividade que realmente interessa e conta ¾ quer para as empresas conquistarem ou preservarem quotas de mercado, quer para o País atrair investimentos produtivos ¾  é a que assenta em vantagens estruturais, como, por exemplo, as que são proporcionadas pela qualificação dos recursos humanos, pela qualidade do sistema de Investigação e Desenvolvimento, pela rede de infra-estruturas, pelo desenvolvimento do sistema financeiro, pela credibilidade do regime fiscal, pela celeridade da justiça e pela eficácia da administração pública, entre outros aspectos. É óbvio que Portugal tem de manter no topo das prioridades nacionais a aceleração das reformas estruturais necessárias para o bom funcionamento da economia, para recuperar o tempo perdido e voltar a subir na tabela da competitividade mundial.

 

Quinto desafio, que designo como o objectivo da Coesão Social

 

Promover a coesão social deve ser outra das nossas prioridades. Por um lado, porque o nosso modelo de desenvolvimento continua desfasado das exigências da nova economia, como referi no início, situação agravada aliás por um padrão de distribuição de riqueza fortemente inigualitário e com grandes assimetrias territoriais. Por outro, porque o nosso sistema de protecção social apresenta grandes fragilidades e lacunas, que o aumento do desemprego tem claramente revelado. Importa pois lutar para que não se criem fracturas e tensões que porão inevitavelmente em causa a coesão nacional mínima, com os perigos que isso implica.

No meu entendimento, a luta contra a pobreza e a exclusão é uma questão de dignidade social e uma obrigação moral indiscutível. E, sem prejuízo do importante contributo da via assistencial, deve ser prosseguida pelo crescimento da economia e pela justiça social, nomeadamente através da igualdade de oportunidades e da distribuição do rendimento.

 

Finalmente o sexto desafio, que designaria como o da Requalificação da Democracia

 

A meu ver este é também um desafio de longo prazo que, embora comum a todas as democracias europeias, importa não menosprezar. Se quisermos continuar a fazer da Democracia ou, talvez melhor, da democratização das sociedades um desígnio mobilizador e um factor de genuína emancipação, não poderemos evitar as questões do fechamento do campo político sobre si mesmo, a que se assiste actualmente um pouco por todo o lado, do alheamento dos cidadãos em relação à vida pública e, de qualquer forma, à vida partidária, assim como a questão da erosão do núcleo básico dos direitos sociais que, a meu ver, atinge também o próprio coração dos direitos cívicos e políticos de que a democracia é guardiã, em nome da garantia da liberdade e da igualdade entre todos os cidadãos.

 

Meu Senhores

 

Para enfrentar parte destes desafios internos, contaremos ainda, pelo menos até 2013, com os recursos e a disciplina dos Quadros Comunitários de Apoio. A negociação dos montantes assegurados até 2013 foi extremamente dura. Nela jogámos a nossa credibilidade. Importa pois que durem também os efeitos desse generoso investimento comunitário no nosso país. Até porque, é não só Portugal, mas o próprio modelo europeu de coesão e solidariedade que serão postos à prova. Reformando Portugal, serviremos a causa europeia e daremos razão a uma visão forte da Europa.

Passando, por último, para o plano dos desafios externos, com que Portugal se defronta, é importante frisar que é também no quadro europeu que se joga o essencial quer da sua autonomia de decisão quer da sua afirmação externa, designadamente nas suas áreas prioritárias de relacionamento.

Neste âmbito, é oportuno salientar o elevado nível de participação que Portugal tem assegurado no seio das forças internacionais de paz da ONU, da NATO e da EU, assim como o desempenho exemplar dos militares portugueses nessas missões. Este é um ponto que deve ser destacado, até porque é uma das frentes do projecto europeu em que Portugal tem estado presente, na primeira linha. Acresce que a actual teia de inéditas e difusas ameaças internacionais, acrescida no caso português de uma situação geográfica particularmente exposta, não permite dúvidas quanto ao acerto da decisão estratégica de procurar, através das disciplinas de solidariedade do projecto europeu, garantir a segurança e defesa do país.

De facto, é bom não esquecer que a afirmação de um país não se mede só em função da dimensão do território ou do PIB, mas da sua capacidade de se afirmar como parceiro credível, empenhado em contribuir efectivamente e activamente para a resolução dos problemas e para o desenvolvimento de políticas cooperativas e inovadoras.

Para a afirmação externa de Portugal e dos nossos interesses, é fundamental envidar todos os esforços para nos mantermos no “pelotão da frente” e melhorar a nossa imagem. É preciso que o nome de Portugal acrescente valor, que possa ser associado a atitude cooperativa, a participação empenhada, a qualidade e a modernidade. Tal estratégia não pode resumir-se contudo a uma operação de marketing para o exterior. É um processo mais fundo, que os próprios portugueses devem assumir, desde logo transformando a visão pouco positiva que muitas vezes têm de si próprios. Através de uma atitude mais afirmativa, empreendedora e valorizante.

A este propósito, gostaria ainda de recordar que o exercício por Portugal da Presidência da União Europeia, no segundo semestre do próximo ano, constituirá uma ocasião privilegiada para reafirmar o nosso firme empenho europeu e para contribuirmos para o avanço da integração europeia, com determinação, visão e estratégia.

 

Excelências

 

A evocação que acabo de fazer das duas décadas de integração europeia deve servir, acima de tudo, para preparar o futuro. Por isso, tornei presentes alguns dos nossos principais desafios.

Olhando-nos e olhando o que realizámos, parece-me, temos razões de sobra para nos orgulharmos, como portugueses e como europeus.

O país que somos hoje está certamente muito longe do país que desejamos ser amanhã, mas está ainda mais longe do país bloqueado e à procura de um futuro que éramos ontem, quando apresentámos o pedido de adesão à comunidade europeia. De então para cá, que grandiosa transformação se deu!

Também no plano da construção europeia, apesar das dificuldades presentes, como foram proveitosos e fecundos todos estes anos. O projecto europeu em que hoje temos o privilégio de participar tem assegurado a um número sempre crescente de europeus paz, estabilidade, prosperidade, justiça e liberdade.

Tenho-o repetido, muitas vezes, mas sempre com segura convicção: para os portugueses, a Europa é hoje condição de uma efectiva independência.

É no quadro da integração europeia que asseguramos melhor a segurança, o desenvolvimento e a liberdade que são apanágios da soberania. É no quadro europeu que poderemos resolver com mais eficácia os problemas e as dificuldades que atravessamos, fazer valer os nossos interesses e continuar a sentir-nos cada vez mais portugueses, sendo ao mesmo tempo mais europeus – orgulhosamente mais europeus.

Sei bem que no nosso continente estes são tempos de dúvida, e, para alguns, de hesitação quanto à bondade do projecto que hoje estreitamente nos liga. Mais uma razão para, amparado por uma clara experiência nacional e internacional, afirmar a minha convicção – pessoal é certo, mas seguida por muitos – de que é numa unidade solidária, no cumprimento de objectivos livremente negociados, e numa consentida partilha de soberanias, que a Europa ocupará o lugar que as suas responsabilidades históricas lhe exigem para a edificação urgente de um mundo mais justo.

O orgulho que devemos sentir, pelo que fomos capazes de fazer, deve ser, contudo, o contrário da auto-complacência. Deve ser antes a raiz da nossa exigência, da nossa responsabilidade, da nossa ambição de fazer muito mais e melhor.

 

 

 

Muito obrigado.