detalhe de foto de José António Barão Querido, alçada da tapada

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Instituto Português de Relações Internacionais, 12 de Março de 2007

March 12, 2007

Instituto Português de Relações Internacionais

Universidade Nova de Lisboa

 

 

 

 

“Debate sobre o futuro da Europa: a questão da reforma institucional”

 

Jorge Sampaio

 

Ilustres Conferencistas

Caros amigos

  

As minhas primeiras palavras são naturalmente de agradecimento ao Instituto Português de Relações Internacionais, na pessoa do seu Director e meu querido amigo, Dr. Carlos Gaspar, pelo amável convite que me dirigiu para participar nesta Conferência.

Conhecem, imagino, a minha militância pela causa europeia e, porventura, também as minhas convicções europeístas, repetidamente afirmadas ao longo da última década, algumas das vezes até neste mesmo local.

Aliás confesso que quando comecei a preparar esta intervenção, me invadiu um sentimento mesclado de estranheza e de déjà vu.

Sentimento de déjà vu porque, em boa verdade, andamos a discutir esta temática desde o Tratado de Nice que, em anexo, comportava já uma “Declaração sobre o futuro da Europa”. Ou seja, pelo menos, desde a última Presidência Portuguesa da União Europa, no virar do século. Mas, querendo ser mais rigoroso, poderíamos mesmo subir um pouco mais no mapa do tempo e ir até Maastricht, marco incontornável da história europeia a um duplo título – primeiro, porque foi o último grande Tratado europeu que permitiu praticamente todos os mais significativos avanços até hoje registados a nível da integração europeia; em segundo lugar, porque foi o primeiro Tratado inacabado, que deixou já em aberto um conjunto de questões importantes para o futuro da Europa.

Por tudo isto, a uma profunda impressão de déjà vu, a que me referia acima, se associou também um sentimento de estranheza porque, olhando agora para o passado mais recente, a questão do futuro da Europa só desapareceu do debate público quando, em meados de 2005, franceses e neerlandeses, enterraram o Tratado Constitucional Europeu. Ou seja, quando, de repente, nos vimos afundados num presente sem futuro, condenados a viver um período de nojo decretado, mas a que se deu o nome oficial de “período de reflexão”.

Confesso-lhes também que, porventura por deformação da minha vida política, sempre associei “reflexão” à acção e à necessidade de, antes de tomar decisões importantes, pesar os prós e os contras, aferir a bondade das alternativas e fundamentar devidamente uma visão e uma estratégia. Por isso, período de reflexão não pode ser para mim, sobretudo quando estão em causa questões de interesse público ou ligadas ao futuro da colectividade, sinónimo de compasso de espera sem fim à vista nem tão pouco forma de iludir problemas.

Claro que no imediato rescaldo da consulta popular em França e nos Países Baixos seria difícil – e até absurdo – relançar um debate sereno sobre o futuro da Europa. Mas, a meu ver, aquilo a que já chamei também “tempo de ressaca” tem sido longo, demasiado longo. Depois, o facto de se ter ignorado que o impasse se transformou, com o correr do tempo, numa crise funda tem contribuído para agravar, ainda mais, a desresponsabilização de uns, o alheamento de outros e, sobretudo, a dificuldade geral em ultrapassar a situação de bloqueio que actualmente se vive.

A certa altura, tentou-se escamotear a crise de confiança na Europa, desviando a atenção para aquilo a que se chamou alternadamente “Europa dos resultados” ou dos “projectos” no pressuposto – a meu ver erróneo – de que bastaria que a Europa melhorasse o seu desempenho prático em sectores chave para os cidadãos – na economia, no emprego, na imigração, na segurança – para que o impasse constitucional se diluísse. Ora, este pressuposto repousa numa falácia porque omite a relação de causalidade entre estas duas questões. Ou seja, para que precisaríamos de um novo Tratado se a Europa conseguisse, no quadro contractual vigente, alcançar as finalidades que prossegue? Para quê então todos estes anos dedicados à reforma institucional da Europa, se o Tratado de Nice fosse suficiente para continuar o processo de integração da Europa alargada?

Realizado em grande parte o desígnio mobilizador da unificação do continente europeu, cujo significado e importância, não são naturalmente de todo secundários, e que constituiu um poderoso motor do projecto europeu até Maio de 2004, vivemos desde então prisioneiros, por um lado, do próprio sucesso da história da integração europeia e, por outro, da nossa incapacidade em responder a um conjunto sempre mais vasto de desafios colocados pela globalização galopante e por uma realidade internacional sem cessar mais volátil, mais exigente e cada vez mais imprevisível.

As dificuldades são, em primeiro lugar, de ordem interna e prendem-se com o recente alargamento. Digamos que a União se confronta a este nível com típicos problemas de crescimento, que importa controlar, através de adequadas políticas correctoras, medidas de acompanhamento e estratégias de contenção de riscos. Mas as dificuldades são também de natureza exógena e resultam da globalização, quer se trate da economia, do emprego, da protecção social, da educação e da formação profissional, das migrações ou da segurança, só para dar alguns exemplos de sectores em que os efeitos negativos da mundialização mais se têm feito sentir e em que a Europa mais tem revelado as suas insuficiências em sustentar a acção dos Estados.

Resulta assim a percepção, por parte das opiniões públicas, de que quer a Europa quer os seus Estados têm fracassado, o que contribui para agravar o sentimento de insegurança, para descredibilizar o projecto europeu e até para alimentar o desencanto dos cidadãos em relação à política em geral.

Mas, a meu ver, há aqui um certo paradoxo. De uma parte – mostram-no todas as sondagens – os europeus pedem mais da Europa e da União Europeia, nomeadamente no que se prende com a regulação das consequências da globalização económica, sobretudo no plano do emprego, e com a afirmação da Europa no mundo; mas, de outra, não parecem, acreditar muito na capacidade das instituições europeias, nem estar dispostos a dar-lhes os meios necessários para a realização das suas missões – não é o que revelam a baixa taxa de participação nas eleições europeias bem como o impasse constitucional ?

Salta, no entanto, aos olhos que as dificuldades com que nos defrontamos reflectem, pela sua dimensão estrutural, preocupantes sinais de vulnerabilidade do modelo de desenvolvimento comum à maioria dos parceiros da União Europeia. Por tudo isto, entendo que para estes problemas, que são de natureza global, não há soluções unilaterais nem espaço para atitudes isoladas.

Assim, o primeiro escolho a evitar neste processo, é o dos impasses do proteccionismo, do retraimento internacional e do impulso libertário de desmantelamento do modelo europeu. Em segundo lugar, importa empenharmo-nos na procura das melhores estratégias para que a União Europeia, como um todo, possa sair da crise.

É neste ponto que se torna urgente ultrapassar o actual bloqueio constitucional. E aqui entendo naturalmente que é preciso escutar o que diz a opinião pública europeia e respeitar o sentido do voto dos europeus, não só dos que votaram o Tratado como dos que o recusaram.

Gostaria a este propósito de lembrar três resultados de estudos de opinião feitos no rescaldo dos referendos em França e nos Países Baixos: primeiro, mesmo os partidários do “não” afirmaram acreditar numa renegociação da Constituição (respectivamente 62% em França e 65% nos Países Baixos); segundo, em ambos os casos, a esmagadora maioria dos eleitores afere positivamente a sua pertença à União Europeia (88% em França e 82% nos Países Baixos); terceiro, embora a avaliação da necessidade de uma Constituição não seja uniforme nos dois países, é afirmativa em ambos (para os franceses esta é indispensável à prossecução da construção europeia (75%), ao passo que os holandeses estão divididos (50%) em relação a este ponto).

Daqui parecer legítimo concluir que quer os franceses quer os holandeses rejeitaram o Tratado não por serem anti-europeus ou por porem em causa a sua pertença à União Europeia, mas por não serem eurodogmáticos, por considerarem que, tal como em política interna, têm uma palavra a dizer sobre os destinos da União. Ou seja, não é a credibilidade da opção europeia que está em jogo, mas a afirmação da vontade dos povos no que respeita aos desígnios da União Europeia. Importa que os cidadãos se revejam na União e que esta represente a vontade dos Povos. A Europa dos Povos está pois viva e de boa saúde e este elemento é, por si só, de saudar.

Como corolário de todos estes elementos, impõe-se refutar a tese, infundadamente propalada, de que eurocepticismo começa a ser a tendência dominante na Europa. Mesmo se, no ano passado, se registou uma ligeira diminuição do apoio dos cidadãos à União Europeia, o Eurobarómetro de Dezembro último mostrava que 53% das pessoas interrogadas valoram positivamente a sua pertença europeia positiva, 54% entendem que esta favorece o seu país. No entanto, a opinião pública mostra-se francamente insatisfeita com o rumo seguido quer pela União Europeia (apenas 33% considera que vai na boa direcção) quer pelo seu próprio país (só 28% está optimista).

Daqui permito-me concluir também que há boas razões para se reclamar “mais Europa e melhor Europa”, até como condição de melhoria da própria situação a nível nacional.

Quando digo mais Europa, penso numa União Europeia mais integrada politicamente, no sentido para que aponta o Tratado Constitucional europeu. Por isso entendo que, qualquer que seja a solução formal a encontrar, importa preservar o acervo do actual Tratado. Os avanços que contém permitirão dar um impulso político à União.

Poder-se-ia naturalmente ter ido mais longe. No plano social ou ainda institucional. Por exemplo, pessoalmente continuo a pensar que a inclusão de um sistema bicameral teria sido seria benéfica para a salvaguarda do princípio da igualdade entre os Estados e para o bom funcionamento da União como Federação de Estados-Nação. Mas foi o acordo possível. Importa pois não desperdiçar as potencialidades que este Tratado encerra. Devemos evitar que o seu património seja liquidado, saldado ou posto em leilão, o que só prejudicará países de dimensão média, como Portugal. Há que lutar pela sua recuperação.

Por isso participei na redacção e subscrevi, com outros, o Apelo de Florença, em Novembro passado, um curto texto em que se defende a preservação das Partes I e II do actual Tratado Constitucional e uma eventual clarificação dos pontos litigiosos da parte III através da inclusão de declarações ou protocolos adicionais.

Também sei que actualmente há outras propostas em estudo, inclusivamente a de proceder por etapas, começando pela adopção de um mini-Tratado, porventura reduzido à Parte I pontualmente completada com algumas disposições da Parte III.

O tempo joga contra nós. Perante a emergência certa de novos actores mundiais, se a Europa não se quiser tornar mera espectadora da história, há que agir depressa.

Só com mais Europa política poderemos evitar o declínio e a irrelevância para que algumas teses em voga nos pretendem remeter. A União Europeia é demasiado importante no sistema internacional para se entregar a uma lógica de fechamento depressivo ou a reacções emocionais face aos poderes que lhe disputam espaço de influência no mundo de hoje, representem eles hegemonias já instaladas, como a americana, ou potências emergentes como a China ou a Índia.

Defender o futuro da Europa passa hoje por prosseguir a causa europeia, enquanto causa de paz, de direitos humanos, de democracia, de liberdade e de protecção do modelo social europeu das ameaças que resultam de um entendimento puramente liberal da globalização. Defender o futuro da Europa passa hoje por prosseguir essas diferentes causas, dando satisfação ao que pedem os nossos cidadãos e relançando, com coragem, o projecto político europeu. Mas para tal precisamos, no mínimo, do acervo do actual Tratado constitucional. É preciso apressar o passo porque a globalização é como as emergências, não espera.

 

Muito obrigado a todos