Entrevista do Dr. Jorge Sampaio à «Voz das Misericórdias»
March 17, 2008Portugal é o país da União Europeia com mais tuberculose
Jorge Sampaio, em entrevista ao Voz das Misericórdias, alerta que um terço da população mundial tem tuberculose e que Lisboa, Porto e Setúbal concentram a maior parte dos casos registados no país.
17/03/2008
A tuberculose em Portugal é uma preocupação? Qual é o ponto da situação?
Essa pergunta deveria ser dirigida às autoridades de saúde responsáveis pelo controlo da Tuberculose (TB) em Portugal. Não obstante, segundo informações do Ministério da Saúde, posso adiantar que Portugal é um dos países da União Europeia com maior incidência de casos notificados de TB, apresentando características de infecção emergente. Em conformidade com dados da União Europeia (EU), referentes a 2005, a incidência média na EU a 25 é de 12 por cada 100.000 habitantes, ao passo que em Portugal é de 31.
Quais as regiões com mais incidência?
As áreas urbanas de Lisboa, Porto e Setúbal continuam a ser críticas, concentrando a maior parte dos casos registados no país e onde o ritmo de declínio é mais lento. É sabido que encontramos nestas áreas os factores de risco mais determinantes, com o consequente impacto negativo no sucesso terapêutico e no aumento da resistência. Temos um longo caminho a percorrer, embora se assista a uma redução acentuada do nível endémico da TB, directamente associada à melhoria dos índices de desempenho do Plano Nacional de Luta contra a Tuberculose.
À escala mundial, trata-se de um grave problema de saúde pública?
Sim, a TB forma, juntamente com o HIV-SIDA e a Malária, o conjunto das três maiores pandemias mundiais. No entanto, à diferença da SIDA, por exemplo, a TB é uma doença curável, mas que continua a matar 4.500 pessoas por dia. Deve, no entanto, salientar-se que se têm registado progressos significativos no controlo mundial da TB, embora a batalha esteja ainda longe de estar ganha, razão por que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a TB uma emergência global. De frisar ainda que tem havido progressos em todas as regiões do mundo.
Um progresso diferente de país para país?
De facto, a OMS calcula que um terço da população mundial esteja infectada com TB e que, em 2005, se tenham registado 8.8 milhões de casos novos e 1.6 milhões de óbitos por TB. 80% dos casos concentram-se em 22 países, a saber, por ordem alfabética: Afeganistão, África do Sul, Bangladesh, Brasil, Cambodja, China, Etiópia, Filipinas, Índia, Indonésia, Moçambique, Myanmar, Nigéria, Paquistão, Quénia, Federação da Rússia, República Democrática do Congo, Tailândia, Tanzânia, Uganda, Vietname, Zimbabué.
As regiões mais afectadas são África e Ásia?
Sem dúvida, embora a região europeia, na acepção da OMS (que abrange também os países da ex-União Soviética), se encontre numa situação crítica, podendo até nem vir cumprir a tempo (2015) os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio para a Tuberculose (deter e começar a reduzir a incidência da TB), caso não sejam tomadas medidas de emergência. Não obstante, e como avaliação geral, repito que se tem assistido a uma evolução positiva no plano mundial: a taxa de detecção da TB subiu para 60% e a de sucesso no tratamento para 84%, o que representa um progresso muito significativo com vista à realização das metas estabelecidas (70% na detecção de novos casos e 85% de casos bem sucedidos no tratamento).
Qual tem sido o contributo da comunidade internacional no combate a esta doença, nomeadamente por parte do G8?
O papel da Comunidade Internacional é fundamental. As pandemias não se combatem senão no plano global, com planos globais, embora a implementação dos programas e das medidas seja necessariamente local.
Por exemplo, o primeiro plano mundial das Nações Unidas para o controlo da Tuberculose, chamado Plano Global para travar a TB, que data de 2001, foi determinante para progredir no controlo da TB. Entretanto, já vamos na segunda edição desse Plano que agora abrange o período de 2006-2015. Ambos são de excelente qualidade técnica e têm produzido resultados notáveis.
De que tipo?
Entre 2001 e 2005, o número de pacientes tratado com o DOTS (Método de tratamento por observação directa) duplicou, tendo passado de 2 milhões, em 2001, para 4 milhões em 2004. O segundo Plano, que está agora em vigor, tem por objectivo levar ao cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) na área da TB.
Está, então, satisfeito, com a cooperação internacional?
Em suma, graças a um crescente empenho da Comunidade Internacional tem havido progressos, mas têm sido lentos e arrancados a ferro e fogo … as emergências não esperam, é preciso fazer mais e melhor. Além do mais, as formas de TB resistentes (multi-resistentes e ultra-resistentes) constituem uma nova ameaça que não pode de todo ser descurada.
Os PALOP defrontam-se com este problema?
Sim, especialmente Moçambique que se encontra entre os 22 países mais afectados a nível mundial e também o caso preocupante da Guiné-Bissau.
Não esqueçamos que eliminar a TB enquanto problema de saúde pública é uma batalha sem tréguas, com várias frentes sobretudo nestes países em que os índices de desenvolvimento são extremamente baixos.
A pobreza é um entrave?
A TB e a pobreza estão estreitamente associadas e formam um verdadeiro círculo vicioso – quem ignora que a infecção da TB se transmite mais rapidamente em situações ambientais de risco, caracterizadas pela pobreza, pela sobrepopulação, por más condições de habitação, de ventilação, de saneamento e, sobretudo, pela má nutrição? Mas este círculo vicioso entre a pobreza e as doenças como a TB tem de ser quebrado. É menos dispendioso quebrar este círculo do que alimentá-lo com mais mortes, mais pessoas doentes e mais famílias pobres. Por isso, a luta contra a TB será sempre ineficaz, se não for acompanhada de medidas sociais de luta contra a pobreza.
Que papel podem ter as Misericórdias na luta contra a tuberculose?
No plano nacional, as Misericórdias pela extensa rede de serviços que proporcionam às populações, em adequada articulação com o serviço Nacional de Saúde podem desempenhar um papel activo da detecção, prevenção e tratamento de casos de tuberculose.
São necessários gestos de solidariedade, nomeadamente com as suas congéneres africanas?
A solidariedade jamais é em excesso e nunca está a mais. Por outro lado, o facto de partilharmos a mesma língua e de termos um bom conhecimento das realidades desses países deveria incitar-nos a investir na ajuda ao desenvolvimento em matéria de saúde pública – no plano da organização de cursos de formação,
Ser enviado especial da ONU tem sido um desafio?
Sem dúvida, mas também se o não fosse era legítimo perguntar para que serve um Enviado Especial com estas funções! Para mim, exercer estas funções é lutar por uma causa que tem a ver com os direitos humanos. O direito à saúde é tão elementar que por vezes fica esquecido, de tal forma temos tendência a dar o óbvio por adquirido… Tenho-me empenhado muito nestas funções até porque as questões de saúde pública sempre me interessaram.
Propôs-se a atingir objectivos concretos? Quais?
Embora prossiga objectivos concretos, estes não são quantificáveis. Eu não tenho por missão curar doentes – não sou médico. Por isso, não posso somar consultas, doente tratados, paciente curados …. Para este ano de 2008, tenho três objectivos específicos, para além de prosseguir com as actividades de base destinadas genericamente a contribuir para melhorar a eficácia do controlo mundial da TB:
– a realização de uma reunião de alto nível, à margem da Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas para a Sida, inteiramente dedicada à co-infecção HIV-Sida, uma iniciativa inédita que conta com o patrocínio do Secretário Geral das Nações Unidas;
– a continuação de intensos contactos políticos para que a TB continue na agenda mundial, por forma a contribuir para a realização atempada dos ODM nesta área;
– o lançamento de uma campanha mundial de prevenção da TB com a generosa colaboração de Luis Figo que aceitou dar a cara pela luta contra a TB.
[original em: http://www.agencia.ecclesia.pt/pub/19/noticia.asp?jornalid=19¬iciaid=57804]
Publicado em entrevista, jorgesampaio, português