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Arquivo de May, 2007

50 ANOS DO TRATADO DE ROMA: BALANÇO E PERSPECTIVAS, Fundação de Serralves

May 24, 2007

INTERVENÇÃO NO SEMINÁRIO

 

  JORGE SAMPAIO

 

  POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO DIA DA EUROPA

 Porto

Fundação de Serralves

24 de Maio de 2007

Senhor Secretário de Estado da Defesa Nacional e do Mar,

Dr João Mira Gomes

Senhor Vice-Presidente do Parlamento Europeu,

Dr. Manuel dos Santos,

Senhora Directora da Representação da Comissão Europeia em Portugal, Drª Margarida Marques

Senhores organizadores

Minhas Senhoras e meus Senhores

Caros Amigos

  

Abreviarei as circunstanciais palavras de abertura, à expressão do meu reconhecimento pelo amável convite para hoje aqui estar presente, bem como do agrado com que prontamente o aceitei – sabem o quanto me interessam as questões europeias e a centralidade que estas têm tido no conjunto das minhas intervenções e reflexões ao longo dos anos, muito particularmente durante a última década.

 

Confesso, porém, que ao tomar conhecimento da vasta temática deste seminário – “Os 50 anos do Tratado de Roma: balanço e perspectivas”, sobre a qual me foi solicitado que me debruçasse, as dúvidas e as hesitações quase superaram o meu habitual militantismo e, por pouco, não passei a pasta …

Dúvidas porque cabe à História – e não a nós – realizar balanços. Hesitações porque, num ano de aniversário, as comemorações correm o risco de nos desviar do presente e de nos enterrar num tempo que já não dita futuros.

De facto, passados cinquenta anos do Tratado de Roma, em que tudo mudou tão radicalmente, é natural que a primeira questão que se coloque seja: mas, afinal o que significa comemorar, hoje, o Tratado de Roma? E o que representará essa data para a imensa maioria dos europeus que, quer por força do ciclo natural da idade quer pelas barreiras artificias da história, não viveram esse dia?

A esta última pergunta talvez tenhamos que responder: para esses representa pouco ou mesmo nada. Mas não deveria ser assim. Poderiam não conhecer os pormenores – mas deveriam ter uma percepção global e aguda da importância fundadora, histórica e política, daquela data. Não estou, porém, nada seguro que assim seja. Nesta medida, as comemorações desta data tornam-se um dever de memória.

Porventura a pergunta que formulei poderia ser substituída por outras, como, por exemplo, a de apurar o que significa a União Europeia para os europeus, para aqueles que sempre viveram na União Europeia e para os outros, que conheceram, digamos o antes e o depois.


Quanto às respostas, penso que cobrem um largo espectro de possibilidades, cujos extremos correspondem, por um lado, aos que não concebem a sua vida senão enquadrada na comunidade europeia e, por outro, aos que consideram a União Europeia de uma forma tão remota que nem sequer faz parte do seu horizonte de pertenças identitárias… Mas significará isto que precisaremos então, antes de tudo, de cultivar um patriotismo da Europa?

Assim, à pergunta “o que significa, cinquenta anos depois, comemorar o Tratado de Roma?” inclino-me a responder: significa reforçarmos a vontade de fazermos da nossa Europa uma verdadeira comunidade de destino, um projecto político mais dinâmico, com maior iniciativa e determinação, com menos bloqueios, desequilíbrios e menos adiamentos. Com diferenças e alternativas mais clarificadoras e, ao mesmo tempo, pois não são incompatíveis, consensos mais sólidos e duradouros. Quero eu dizer, uma Europa mais madura, com maior exigência e maior responsabilização, mas também com maior criatividade e maior iniciativa, maior inovação e maior ambição.

Não vos escondo que gostava que estas comemorações ocorressem num clima mais optimista e confiante. Não ignoro, não podemos ignorar, que os tempos têm sido difíceis para a Europa e para Portugal, que se instalou um negativismo que gera apatia e resignação. Penso que estas comemorações podem e devem ser o momento para recarregarmos as baterias europeias, reforçando a nossa vontade de reagir e, sobretudo, de agir com continuidade, persistência e determinação.

Em vez de um balanço que à História cabe realizar e tendo consciência de que, do que fizermos ou não fizermos, ela nos irá pedir contas, devemos antes, avaliar hoje o ponto em que estamos do nosso caminho. Como em 1948 os fundadores fizeram, é para o futuro que devemos voltar os olhos, não ignorando os problemas que longamente adiámos e temos obrigação de resolver, os novos desafios que, neste tempo de aceleração, não esperam por nós. Que Europa queremos ? Como a queremos ? Para que a queremos ? Que temos de fazer para lá chegar? Que futuro escolhemos de entre os futuros possíveis?

Por isso, nesta data de tão grande significado, proponho-vos uma reflexão crítica e exigente sobre o papel que a Europa pode assumir no mundo. Deixarei, pois, de lado a difícil quão decisiva questão para todos nós do modelo social europeu. Deixarei também para melhor ocasião, a questão crucial da identidade europeia e dos limites do projecto europeu. Ignorarei, enfim, as questões institucionais, porque ainda no rescaldo da rejeição do Tratado Constitucional em França e nos Países Baixos, disse, e depois por diversas vezes e em ocasiões distintas desenvolvi, o que nesta matéria, me parecia poder ser feito. Não me vou por conseguinte agora repetir, mesmo se, correndo o risco de parecer ficar fora da corrente …

 

*

 

Data do verão de 1993, o célebre artigo de Samuel Huntington, em que pela primeira vez o autor avançava a hipótese de que, com o fim da guerra fria, assente em pressupostos ideológicos, a política global passaria a ser dominada pelo confronto de civilizações, segundo linhas de clivagem de natureza essencialmente cultural.

Huntington considera assim que se caminha progressivamente para um choque de civilizações, num quadro dualista, em que o mundo aparece fracturado em dois, “o ocidente” opondo-se ao “resto do mundo”. Dada a secular hegemonia do “ocidente” (em termos políticos, económicos e culturais), esta seria a hora da reposição de novos equilíbrios, o momento de afirmação da antítese, numa visão afinal clássica da dialéctica hegeliana da história.

Porque fiz esta digressão ? Basicamente por duas razões.

Primeiro porque considero que o choque de civilizações não é nem uma mera profecia, nem matéria de pura disputa de académicos. Entendo, ao invés, que é uma hipótese que deve ser levada a sério, tanto mais, que acontecimentos posteriores de todos sobejamente conhecidos, a não permitem desmentir nem descartar totalmente. Por conseguinte, importa avaliar, à luz deste paradigma, o que representa o projecto europeu e qual tem sido o seu impacto no curso da vida internacional. Importa perceber se tem contribuído para reduzir a probabilidade de um choque de civilizações.

Em segundo lugar, porque este quadro de análise oferece interessantes pistas para delinear o futuro da Europa no mundo, o que podemos esperar da União Europeia e o que devemos exigir dela, para que possa definir-se como um antídoto ao choque das civilizações. Até porque, na história não há fatalismos, nem determinismos. Pelo que estamos no direito de exigir da União Europeia que seja uma força motriz do diálogo das civilizações e que não se deixe nem apagar nem arrastar para um confronto que pode evitar.

 

*

 

Ponto 1– A progressiva emergência da União Europeia como actor de política externa

  

O aviso de Huntington data de 1993. Nesse ano, a Europa, o que fazia ?

Andava às voltas com a ratificação do Tratado de Maastricht, que acabou por entrar em vigor em Novembro desse ano (sempre os Tratados e as suas sempi-eternas revisões … ); concluía o Mercado Único e preparava a segunda fase da União Económica e Monetária; abria as negociações de adesão com a Áustria, a Finlândia e a Suécia (sempre os sucessivos alargamentos …). No plano externo, travava-se o conflito nos Balcãs, a Europa dedicava-se à definição das suas relações com a Rússia e com os futuros PECO; no fim desse ano, tinha lugar o Uruguay Round, que abriria caminho para a maior liberalização de sempre no âmbito do comércio mundial.

Como todos bem sabem, os primeiros trinta anos da construção europeia fizeram-se ao abrigo dos Tratados de Roma, mesmo se, em 1986, o importante Acto Único os veio completar, por forma a acomodar as necessidades, cada vez mais prementes, da chamada “cooperação política”. Mas foi o Tratado da União Europeia, assinado em Maastricht, imposto pelo termo da Guerra Fria e dos equilíbrios que dela derivavam, que representou um verdadeiro ponto de viragem na dinâmica do projecto europeu.

Apesar de cristalizar todas as indecisões e compromissos próprios das épocas de transição e mudança, o Tratado de Maastricht é inovador a vários títulos, não só por ter tornado a criação do euro irreversível, mas também na área aqui considerada, porque consagra de forma irreversível uma Política Externa e de Segurança Comum, que deveria conduzir, a prazo, a uma Política de Defesa Europeia. A introdução destas matérias no então chamado segundo pilar, correspondeu a um esforço de sistematização da prática de cooperação política e representou um compromisso renovado dos Estados Membros em coordenarem as suas políticas nacionais, em torná-las mais coerentes e em prosseguirem objectivos comuns. Na altura, foi um primeiro sinal de esperança para vários sectores da opinião pública, então preocupada com a crise no Golfo e o agravamento da situação na Jugoslávia.

Após quase década e meia de vigência deste Tratado, tal como modificado em Amesterdão e em Nice, como avaliar os resultados obtidos ?

A meu ver, a resposta deve ser matizada. Os resultados obtidos em matéria de Política Externa e de Segurança Comum ficaram bastante aquém das expectativas, mas estão longe de serem todos negativos.

Comecemos pelas boas notícias.

O que nos trouxe a PESC ?

 

 

As boas notícias

 

Antes de mais, uma ressalva. A meu ver, nunca será excessivo salientar que graças ao seu próprio caminho de integração, a Europa tem conhecido o período de paz mais longo da sua história. São já, pelo menos, três as gerações consecutivas de cidadãos europeus que tiveram a felicidade de nascer e viver sem afrontarem directamente as atrocidades das guerras fratricidas, a violência gratuita e a barbárie.

Agora a questão que se coloca é: terá, com este projecto, a Europa contribuído também para transformar o mundo?

Pessoalmente, entendo que sim porque a União não tem permanecido fechada sobre si, confinada ao continente europeu, mas tem antes vindo a moldar, com os seus princípios e valores, a cena internacional, dando um contributo significativo para a consolidação das condições de paz no mundo.

Gostaria de frisar este último ponto, porque o carácter ainda irregular e por vezes disperso da actuação da União Europeia, e o seu peso ainda insuficiente como actor eficaz da mundialização, nos fazem por vezes subestimar a sua intensa acção externa.

Neste plano, não devemos esquecer que a União é o primeiro prestador mundial de ajuda pública, desenvolvendo um vasto quadro de cooperação que visa não só integrar esses países na economia mundial, como fomentar o seu desenvolvimento sustentado, através da utilização de critérios inovadores, que ultrapassam o simples binómio comércio-assistência.

Por outro lado, primeira potência comercial do mundo, a União Europeia tem desempenhado um papel de relevo no fortalecimento do sistema de comércio internacional e na sua regulação, designadamente no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Também no contexto das instituições financeiras internacionais, a Europa tem sabido afirmar-se como um actor influente, contribuindo para o estabelecimento de políticas mais adequadas às necessidades dos países em vias de desenvolvimento, nomeadamente no campo da educação, da saúde e da luta contra a pobreza.

Por tudo isto, disse uma vez e reafirmo aqui que a União Europeia constitui um modelo quase perfeito de “contribuinte líquido” para a paz no mundo. Antes de mais, porque se tem construído no pressuposto de que a paz durável repousa na realização universal do direito de todos a uma vida digna. Depois, porque se fundamenta na ideia de que a paz passa, antes de mais, pela prevenção dos conflitos e, se for caso disso, pela sua resolução no respeito pelo direito internacional. Em terceiro lugar, porque a própria União Europeia assenta no valor da diferença e da diversidade quer seja religiosa, étnica, nacional ou cultural, na concepção de que a diversidade não é uma ameaça, mas antes um factor de enriquecimento conjunto e recíproco, constituindo o respeito pela diversidade um princípio fundamental da paz.


Por último, porque a União Europeia também percebeu que a paz não se impõe, mas vive-se colectivamente e que, não sendo um estado natural e espontâneo, se deve cultivar e promover todos os dias, através de uma pedagogia permanente e de acções concretas que a credibilizem.

Na difícil realização destes exigentes princípios, a Europa tem somado algumas vitórias, que são sinais de esperança e pequenos passos na via da sua afirmação no mundo, pela sua capacidade de intervenção diplomática. Penso no Protocolo de Quioto. Penso na luta internacional contra o terrorismo. Penso na Cimeira sobre o Desenvolvimento Sustentável. E penso, claro, na criação dos Tribunais Internacionais ad-hoc (ex-Jugoslávia, Ruanda, Serra Leoa) e do Tribunal Penal Internacional Permanente, o qual representa, a meu ver, um marco decisivo na história da luta pela defesa dos direitos humanos e pela promoção de um verdadeiro direito humanitário internacional.

Outras situações pontuaram o trajecto percorrido pela União Europeia, confrontada com a exigência de promover uma efectiva capacidade de intervenção para a PESC, a que se tem procurado dar uma maior coerência institucional, outra flexibilidade, e úteis expedientes coordenadores, como as estratégias comuns.


Lentamente, mas estamos afinal a falar de um domínio sensível das soberanias nacionais, algumas decisões abriram caminho nestes últimos anos a um desejável progresso da Politica Europeia de Segurança e Defesa, nomeadamente pelo estabelecimento de um órgão político-militar permanente (COPS), pela criação de uma Força de Reacção Rápida e de um Corpo de Polícia Europeia.

Não obstante as dificuldades de um método decisório vinculado a lógicas intergovernamentais, foi possível à União melhorar a credibilidade do seu valor de intervenção diplomática na cena internacional, ao destacar forças militares para a Bósnia, a Macedónia, e a República Democrática do Congo, ultrapassando assim os terrenos de soft power a que geralmente se tem confinado.

 

 


As más notícias

 

 

A questão que agora se coloca é: não obstante todos os progressos realizados, são os resultados obtidos globalmente satisfatórios? Como actor eficaz na adequada regulação da globalização económica? Na redução das disparidades de desenvolvimento a nível mundial? Na luta internacional contra o terrorismo? Na prevenção dos conflitos? Na redução das tensões mundiais? Na protecção do ambiente? Na preservação da diversidade cultural?

Não cabe naturalmente aqui proceder à inventariação dos fracassos, insuficiências e do muito que falhou, lançar em colunas de deve e haver o que constituiu o seu itinerário principal.

Lembremos então as insuficiências de intervenção. O catálogo seria longo pois entre tantas outras coisas importaria ao menos aludir à crise iraquiana; ao conflito israelo-palestiniano; à questão iraniana; ao caso da Coreia do Norte; aos notórios erros praticados no combate anti-terrorista, de que são exemplo designadamente o tratamento dado aos prisioneiros de Guantanámo; à persistente incapacidade da Europa em relançar as suas relações com África, por forma a dar um contributo significativo para vencer a séria e complexa crise de desenvolvimento com que aquele continente se depara, bloqueada afinal por problemas de raiz bilateral que não deveriam prejudicar a actuação da União Europeia enquanto tal; às perigosas estratégias de hegemonia fundadas na gestão de importantes recursos naturais; à incapacidade política em encontrar respostas adequadas às prementes questões ecológicas do planeta.

Limitar-me-ei, pois, a frisar que as lacunas em política externa são graves e preocupantes. Conhecemos as dificuldades e as resistências que tem suscitado e, convenhamos, o descrédito que sobre ela impende pela pouca frequência de acções concretas, apesar de as opiniões públicas europeias manifestarem em geral uma posição relativamente favorável ao reforço do peso da Europa no mundo e do seu papel na cena internacional.


Não creio naturalmente que seja possível desde já pensar na comunitarização da política externa e de defesa. Mas reputo imprescindível proceder a uma maior integração política destas matérias, para além de uma melhor coordenação das políticas externas nacionais e das diplomacias europeias, para além de uma definição mais frequente e célere de posições e de acções comuns, para além do necessário aperfeiçoamento das regras de decisão aplicáveis a estas matérias.

É necessário apostar no desenvolvimento de estratégias e programas de acções concretas e eficazes de política externa comum, bem como, no plano da defesa, de programas de política de defesa comum. Este é um outro ponto, a meu ver prioritário. Sem operacionalidade militar, sem capacidade autónoma, sem armamentos e equipamentos adequados, sem um sistema de informações próprio, sem a disponibilização de recursos orçamentais no domínio militar à altura das necessidades, a Europa não passará de um gigante com pés de barro.


Não será fácil, até porque as opiniões públicas dificilmente sufragam o aumento das despesas militares, mas é um caminho indispensável para que a Europa se possa afirmar na cena internacional. Note-se que ao reclamar mais meios para a defesa europeia, o objectivo é apenas o de os tornar consentâneos com os fins estratégicos prosseguidos, tal como expressos na Estratégia Europeia de Segurança, adoptada em 2003, e nunca alimentar o mito de que se pretende constituir uma força militar europeia comparável e/ou concorrente à americana. A meu ver, trata-se, sim, de colmatar o hiato existente entre a situação estratégica objectiva da União Europeia e a sua capacidade real de a garantir.

Levámos cerca de cinquenta anos para dispormos de uma moeda única, mas valeu a pena. Quero acreditar que, em relação à Política Externa de Segurança e Defesa, conseguiremos idênticos resultados, mesmo se para tal tivermos de recorrer a um modelo diferenciado de integração europeia.

Impõe-se por isso que tenhamos a coragem, primeiro, de assumir os fracassos, e depois, de corrigir as falhas. Não nos podemos continuar a contentar com manifestações de retórica e declarações de intenção grandíloquas quando a realidade se encarrega de as desmentir, confrontando-nos com uma certa ausência da União Europeia na cena internacional.

Entendo que esta é uma tarefa urgente que nos cumpre levar a cabo, porque os desafios da mundialização, as novas ameaças e as crises internacionais não se compadecem com lacunas desta natureza.

 

Ponto 2 – Porque é que a União Europeia pode desempenhar um papel único no nosso conturbado tempo de globalização e de múltiplas tensões ?

 

Na evolução da integração europeia, a vontade política em conferir-lhe uma nova dimensão em matéria de política externa e de segurança comum está bem patente desde o Tratado de Maastricht, como vimos anteriormente, orientação posteriormente confirmada em Amesterdão.

Os fundamentos da criação de uma tal política radicam, sem dúvida, na percepção de que, a par do seu peso económico, a Europa deve ter um protagonismo político correspondente a esse estatuto.

A questão fundamental que, neste particular, se coloca é, no entanto, a de saber que papel realmente pretendemos para a Europa no nosso mundo de hoje e que bases queremos para a identidade política europeia face ao exterior.


Contentar-nos-emos em prosseguir os genéricos objectivos que o Tratado da União, tal como completado pelo de Amesterdão e Nice, estipula para a PESC – a saber: “a salvaguarda dos valores comuns, dos interesses fundamentais, da independência e da integridade da União; o reforço da segurança da União; a manutenção da paz e o reforço da segurança internacional; o fomento da cooperação internacional; o desenvolvimento e o reforço da democracia e do Estado de Direito, bem como o respeito pelos direitos do Homem e das liberdades fundamentais” (artigo 11.º do Tratado de Nice)?

Contentar-nos-emos em aperfeiçoar os instrumentos à disposição da União (as chamadas acções, posições e estratégias comuns, as declarações e a celebração de acordos internacionais), remetendo-a para um estatuto mole de soft power – através do comércio, do direito, da norma e do exemplo ?

Como bem lembra H. Védrine, no seu recente opúsculo, “Continuar a História”, tal seria ter interpretado mal Joseph Nye, para quem o soft e hard powers não são afinal dissociáveis.

Mas tal seria também não perceber que o actual momento de recomposição da ordem mundial, que os desafios da globalização, a crescente afirmação dos extremismos e a polarização dos conflitos mundiais exigem que a Europa se torne, antes de mais, um actor global, assumindo uma liderança firme na cena internacional.

A meu ver, já não basta que a Europa se afirme como potência regional nem que se desenvolva como mero pilar europeu da NATO. Entendo que, nesta área, a ambição dos europeus deveria continuar a ser a de se afirmarem como força à escala mundial, no quadro de uma compreensão abrangente da segurança, que exige uma diferente e mais estreita cooperação para fazer face a um mundo em acelerada mutação.

Recorde-se, de facto, que a presente ordem internacional deve gerir uma realidade que, embora se tenha já manifestado em outras épocas da História, assume agora uma inédita força que molda novas atitudes e a própria distribuição de poderes: a globalização.

Sabemos em que consiste, mas valerá a pena assinalar alguns dos seus aspectos: a compressão do espaço e do tempo pela via do avanço tecnológico do sector das comunicações, a qual, pelo acelerar de contactos entre sociedades, culturas, indivíduos e sistemas jurídicos conduz a uma crescente densificação das interdependências; o estabelecimento de um espaço público de dimensão planetária, alimentado por uma omnipresente sociedade da informação e por novos actores internacionais que se têm apropriado de terrenos de influência, antes monopólio dos Estados; a brusca expansão de questões de amplitude global, desde os quase incontroláveis fluxos de capitais aos diversos tráficos, da porosidade das fronteiras ao domínio de pressões culturais hegemónicas.

Consolidaram-se, assim, tendências anteriores que hoje marcam o nosso viver: o declínio do Estado-Nação, cujo ocaso alguns apressadamente profetizam, mas que os acontecimentos posteriores ao 11 de Setembro desmentem na suas formulações mais excessivas; o enfraquecimento dos governos nacionais face a uma bem mais livre actuação das grandes corporações económicas; a permeabilidade dos países às clandestinas tramas da criminalidade transnacional; as preocupantes projecções securitárias nos direitos individuais; o alargamento do fosso entre as nações que beneficiam da globalização e aquelas que se vão enleando nas suas carências, de que as dolorosas imagens quotidianas das migrações anárquicas constituem amarga ilustração; a crescente importância das ONG, apesar  da persistência de ambiguidades do seu modelo de representatividade; ou a proliferação de movimentos – muitas vezes de expressão radical e extremista, mas com elevado poder de mobilização –  que contestam com vigor as omissões dos governos quanto a alguns efeitos predadores da globalização, configurando-a como um instrumento de dominação económica e veículo de estratégias de hegemonia cultural.


Como então fazer face a esta imparável realidade? Por mim, só vejo um caminho possível, o do reforço do sistema multilateral, como decisivo elemento regulador e indispensável quadro jurídico de mediação das relações internacionais. A meu ver, é este o único caminho possível para conter tentações de hegemonia e opções unilateralistas, que só podem avivar tensões e conflitos e agravar o clima de polarização em que se vive actualmente.

Ora, neste quadro de análise a União Europeia parece bem posicionada para poder desempenhar um papel de relevo na esfera internacional.

Primeiro, a dissolução do mundo bipolar abriu à União europeia novas e mais amplas possibilidades de afirmação na cena internacional. Encurralada, durante a guerra-fria, entre as duas superpotências, ela adquiriu desde então um potencial muito maior de acção estratégica.

Em segundo lugar, a União Europeia tem uma visão da sociedade internacional essencialmente cooperativa e multilateral, que, aliás, espelha a sua própria maneira de funcionar internamente.


Por último, pela razão fundamental de que a União Europeia é já em si um projecto de aliança de Estados e povos, em que a diversidade cultural, linguística, religiosa, política e étnica, é simultaneamente uma premissa e uma corolário, a matriz deste modelo e o seu paradigma. Por conseguinte, sendo um actor político construído, a União Europeia só pode avançar em política externa através de negociações e consensos internos, o que, se comporta riscos acrescidos, encerra, no entanto, também enorme riqueza e potencial.

Este é um ponto crucial e que marca o carácter ímpar da União Europeia como actor de política externa. Embora tenha sido no mundo grego que nasceu a chamada “civilização europeia”, na qual assenta a unidade do projecto europeu, a verdade é que este configura uma ideia nova de Europa e é um ideal, antes de ser uma realidade ou um dado confinado a delimitações de ordem geográfica.


A Europa é um produto da história, mas também da vontade dos homens. Neste projecto, nascido na orla do mediterrâneo, cruzam-se a herança greco-latina, mas também o sonho de Alexandre que ambicionava fundir os povos num império universal bem como Roma que personifica este mito; a tomada de Constantinopla e a sua integração no Império Otomano, que levou à assimilação da Europa com o “Ocidente”; a Europa dos cristinanismos e da reforma; a emergência das nações e da afirmação política dos Estados-Nação; a Europa das Luzes, da liberdade, da democracia e dos direitos humanos; a Europa secular e da laicidade, em que César e Deus se reclamam de cidades diferentes; a descolonização, o fim da Europa como o centro do mundo e a sua “continentalização”; a bárbarie das guerras mundiais e a sua divisão em blocos antagónicos durante quase meio século.

A meu ver, tudo isto faz da Europa um actor de política externa completamente sui generis, inclassificável porque para além de todas as categorias tradicionais em que se dividem os Estados, para além de todas as novas categorias identificadas de agentes internacionais.


Por isso, acredito também que à Europa cabe um papel fundamental na inviabilização da tese do choque de civilizações.

Mas para tal, a Europa tem de superar o que tem sido até á data um traço marcante da sua natureza: oscilando entre dinâmicas concretizadoras e bloqueios decisórios, entre instantes de reforçada confiança e momentos de crispado abatimento. Assim ocorreu, apenas para citar alguns dos casos mais significativos, com o sucesso da criação e posterior lançamento do euro, verdadeiro instrumento federador; com a recomposição do mapa europeu, através da importante decisão geopolítica configurada pelo último alargamento; ou, no sentido oposto, com a desavença diplomática suscitada pela guerra no Iraque; e, naturalmente, com os resultados negativos dos referendos sobre o Tratado Constitucional na França e nos Países Baixos.

Nesta perspectiva, torna-se absolutamente indispensável superar a crise que durante a segunda metade desta década tem sacudido a União e que põe a descoberto diferentes visões sobre as finalidades últimas do projecto, falhas no indispensável cimento de confiança que deve ligar os seus membros, afloramentos negativos de egoísmos nacionais, e claras insuficiências na busca negocial e na concretização de compromissos fomentadores de cooperações e unidade. Refiro-me obviamente à questão do Tratado Constitucional.


Não me parece que a União possa, por mais tempo, adiar o desafio que a História lhe coloca e que obriga dirigentes e povos a desatar o nó do actual bloqueio institucional – isto é, a definir o seu futuro. Terá que fazê-lo resguardando o essencial de uma unidade que tem sido garantia de progresso, sem dúvida. Mas não permitindo também ficar enredada num diminuído pequeno denominador comum, que lhe retira capacidade de acção, lhe rouba ambição e a demite das responsabilidades que os europeus lhe confiaram. Não nos resignemos a ser espectadores passivos de um mundo que nos escapa. Ousemos querer também para os outros povos aquilo que a Europa nos tem trazido, a nós os sues cidadãos –  paz, direitos e desenvolvimento.

 

 Muito obrigado a todos.